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Número 23 – Artículo 6

Experiência de liberdade e individualidade nas grandes cidades: contribuições de Georges Simmel para o debate contemporâneo

Amana Rocha Mattos[A]

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro,Brasil

Resumo

O presente trabalho discute o importante texto de Georges Simmel As grandes cidades e a vida do espírito, escrito em 1903, trazendo seus pontos principais para pensar a experiência de liberdade no espaço urbano nos dias atuais. Desde sua publicação, esse texto se tornou uma referência na área das ciências sociais para o estudo da modernidade, do individualismo e da produção de subjetividade no cotidiano das metrópoles. Entendendo que esses assuntos constituem a base para a discussão de temas como a liberdade, a independência e a autonomia – assuntos de importância central para o campo da psicologia-, nós articulamos os argumentos de Simmel com essas questões, trazendo também outros comentadores de seu texto.

Palavras-chave: liberdade, metrópoles, modernidade, individualismo.

Resumen

El presente trabajo discute el importante texto de Georges Simmel Las grandes ciudades y la vida del espíritu, escrito en 1903, refiriendo sus puntos principales para pensar la experiencia de libertad en el espacio urbano en los días actuales. Desde su publicación, ese texto se hizo una referencia en el área de las ciencias sociales para el estudio de la modernidad, del individualismo y de la producción de subjetividad en lo cotidiano de las metrópolis. Entendiendo que esos asuntos constituyen la base para la discusión de temas como la libertad, la independencia y la autonomía –asuntos de importancia central para el campo de la psicología-, se articulan los argumentos de Simmel con estas cuestiones y otros comentarios de su texto.

Palabras clave: libertad, metrópolis, modernidad, individualismo.

Abstract

The present work discusses the important text by Georges Simmel The metropolis and the mental life, written in 1903, bringing its main points to discuss the experience of freedom in the urban space nowadays. Since it was published, this text became a reference in Social Sciences for the study of Modernity, the individualism and the kind of subjectivity that was being produced in the day-to-day life of the metropolis. Understanding that these themes constitute the ground for the discussion on the subjects as freedom, independence and autonomy – subjects of central importance for the field of Psychology -, we articulate Simmel’s arguments with these questions, using also other authors that comment Simmel’s text.

Key words: freedom, metropolis, modernity, individualism.

 

 

Introdução

A ideia de “liberdade” é, no mundo ocidental contemporâneo, uma noção central para indivíduos e países. As discussões acerca do tema mobilizam pessoas, grupos e a sociedade como um todo, orientam práticas governamentais e pautam as relações internacionais. Para a democracia, a liberdade é um valor fundamental.

Como condição para a convivência democrática e pacífica entre os sujeitos, a liberdade aparece como um valor importante na cidade. Entretanto, seu exercício é difícil e muitas vezes gerador de conflitos, angústia e mal-estar entre os sujeitos que se veem às voltas com as constantes negociações de limites implicadas na convivência humana. Para os sujeitos contemporâneos, a liberdade configura-se como um termo que aglutina uma série de valores, expectativas e práticas. Em trabalho anterior (Mattos e Castro, 2008), tomamos a noção senso-comum de liberdade como uma formação discursiva de nosso tempo, e investigarmos quais são os seus significados, que condições subjetivantes da contemporaneidade ela exprime, percebendo que em muitos sentidos ela se afasta das definições políticas e acadêmicas sobre o que vem a ser “liberdade”. Procuramos investigar de que forma a experiência de liberdade vem sendo significada e vivida por jovens cariocas, que problemas surgem desse exercício, de que forma os sujeitos se sentem tocados por esses problemas. Ao entender a liberdade, a independência e a individualidade, como formações discursivas da contemporaneidade que assimilam importantes concepções das teorias democrática, liberal e pragmática, procuramos identificar os impasses subjetivos e da convivência com o outro, implícitos e vivenciados na atualidade, entendendo tais impasses como tributários de uma concepção de mundo liberal e calcada numa economia de mercado.

No presente trabalho, tomamos o texto As grandes cidades e a vida do espírito de Georg Simmel (2005), escrito em 1903, para refletirmos sobre a constituição psíquica do indivíduo do início do século XX, habitante das grandes cidades, que se veem subjetivado pela convivência com estranhos, pela exigência de autonomia, pelo imperativo da divisão social do trabalho e, acima de tudo, que se veem envolvidos na promessa moderna de liberdade individual. Esse texto, de enorme importância para as ciências sociais, propõe questões muito férteis para o campo da psicologia uma vez que, embora já tenham se passado 109 anos do momento de sua produção, observamos as metrópoles contemporâneas com problemas e questões tributárias do projeto de sociedade moderna. Além disso, o texto descreve com grande sensibilidade os traços constitutivos da urbanidade e civilidade de 1903 (como a indiferença, ou “atitude blasée”; a intelectualização das reações, a objetificação dos vínculos e a onipresença do dinheiro permeando as relações…), o que nos faz perceber, ao longo de sua leitura, que problemas enfrentados hoje nas grandes cidades guardam profunda familiaridade com as questões narradas por Simmel, que tanto lhe chamavam a atenção.

Para complementarmos a discussão do trabalho, traremos textos de Velho (1995) e Vianna (1999) que se debruçam sobre discussões oriundas do clássico texto de Simmel, contribuindo com exemplos e explicações que enriquecerão nossa exposição. Nosso propósito é discutir as ideias centrais desses três textos e articulá-las com o problema da liberdade no mundo atual, oferecendo um campo teórico mais amplo onde se possam pensar as implicações subjetivas da valorização da experiência de liberdade na vida dos indivíduos. Para tanto, gostaríamos de fazer, inicialmente, uma breve apresentação da questão da liberdade, do valor que esta assume na modernidade e de como a democracia constitui o palco para o exercício das liberdades individuais para, em seguida, trazer o texto de Simmel e seus comentadores.

 

A liberdade como valor moderno: um breve panorama

Num mundo hierarquizado como o da Idade Média, de posições sociais bem definidas e relações de poder que se legitimavam pela vontade divina, as noções de tempo e verdade eram eternizadas, tal como ilustra Tocqueville (2000 [1840], p. 38), autor francês que viveu na primeira metade do séc. XIX: “O legislador pretende promulgar leis eternas, os povos e reis só almejam erigir monumentos seculares e a geração presente se encarrega de poupar às gerações futuras o trabalho de resolver seu destino”. Com a modernidade, este cenário social se desmonta, e os papéis a serem desempenhados pelos cidadãos já não são previamente definidos. No estado moderno, a igualdade submete todas as classes a uma mesma lei, o que permite um intercâmbio constante de costumes e valores entre os diferentes grupos sociais. O outro já não está tão distante e a alteridade se estabelece entre tipos de uma mesma espécie, a saber, a humanidade.

“Todas as classes se comunicam e se mesclam todos os dias, se imitam e se invejam; isso sugere ao povo uma porção de ideias, de noções, de desejos, que ele não teria se as posições sociais fossem fixas e a sociedade imóvel. Nessas nações, o servidor não se considera jamais inteiramente estranho aos prazeres e aos trabalhos do amo, o pobre aos do rico; o homem do campo se esforça para assemelhar-se ao da cidade, e as províncias à metrópole” (Tocqueville, 2000 [1840], p. 45).

Neste corte radical com um passado arcaico e hierarquizado, a modernidade estabelece um sujeito universal, amplia a relação do indivíduo com o todo através da ideia de humanidade e torna a filosofia, a ética e a cidade assuntos que dizem respeito a todos os indivíduos, e não mais a uma casta ou classe exclusivamente. A esse respeito, Starobinski (1994) afirma que o século XVIII foi responsável pela invenção do conceito e da experiência de liberdade. Reunindo, de um lado, o pensamento Iluminista e sua busca por fundamentar uma lei da Razão, que não subjugasse o homem aos poderes e caprichos de instâncias mundanas e que lhe desse liberdade para pensar, e, de outro, a ascensão da burguesia na sociedade europeia inaugurando a relação livre com o prazer, o crescimento e o trabalho desligados do pecado, o século XVIII forja a liberdade como algo a ser buscado na relação do homem com o pensamento, com as artes, com o Estado e com a sociedade. Segundo o autor:

“No plano político, como no plano moral ou religioso, nada mais parece justificar a relação arbitrária entre a autoridade e os súditos obedientes. Como dirá Kant, os homens das Luzes resolveram não mais obedecer a uma lei externa: querem ser autônomos, submetidos a uma lei que percebem e reconhecem em si mesmos” (Starobinski, 1994, p. 18).

A ideia de igualdade na modernidade tem papel fundamental na democratização e laicização da sociedade, tornando cada indivíduo por direito igual aos demais, isto é, cada um deve obedecer às mesmas leis, tem as mesmas necessidades e os mesmos direitos que todos os outros. Entretanto, a experiência da desigualdade econômica e social é vivida intensamente no cotidiano europeu. Fatores como a industrialização emergente, o surgimento das grandes cidades e o alargamento do fosso entre pobres e ricos, somados a uma nova percepção da liberdade, tornam a Europa, e em especial a França, um caldeirão em ebulição em meados do século XVIII. Segundo Starobinski (1994), o ataque à liberdade na sociedade francesa estava em toda parte: “nas insolências dos ricos, na falta de habilidade dos governantes, no recurso ao aparato opressivo do poder. Descobre-se que a extrema liberdade de alguns atenta contra a liberdade de todos”. (p. 18)

A Revolução Francesa trouxe à cena os conflitos presentes no seio da sociedade, e seus ideais –igualdade, liberdade e fraternidade– foram o mote das guerras contra a monarquia, a submissão dos cidadãos à autoridade real, os privilégios do clero e da nobreza. Sustentando a Revolução, o Iluminismo fornecia o pensamento sobre os direitos inalienáveis e naturais do homem, particularmente os direitos à liberdade individual e à propriedade privada. Segundo Cassirer (1997), foi a filosofia francesa do século XVIII a primeira a proclamar a doutrina dos direitos inalienáveis (elaborada pelos filósofos ingleses) com entusiasmo: “E ao proclamá-la dessa maneira, inseriu-a verdadeiramente na vida política real, conferindo-lhe essa força de choque, essa potência explosiva que se manifestou nos dias da Revolução Francesa”. (p. 334)

Ter direitos. E não apenas isso, mas conhecê-los e poder lutar por eles. Para Voltaire, pensador iluminista francês, tal é o sentido de liberdade: “No essencial, em sua acepção mais apropriada, a ideia de liberdade coincide com a dos direitos do homem. O que quer dizer, finalmente, ser livre senão conhecer os direitos do homem? Pois conhecê-los é defendê-los.” (Voltaire, citado por Cassirer, 1997, p. 336).

O pensamento Iluminista do século XVIII consolida a importância do domínio de si, a autonomia do sujeito, e passa a visar o domínio do mundo, da natureza. A física e a matemática, com a enunciação das Leis da Natureza, abrem a perspectiva inédita até então de controle e previsão dos fenômenos naturais. Poder intervir no curso natural das causas e efeitos leva os pensadores do século XVIII a tomar o conhecimento como o principal instrumento de ação do homem no mundo, e a técnica daí proveniente como o caminho para o progresso e o desenvolvimento. “O porvir abre-se para novas obras de arte, para novos empreendimentos utilitários, para as grandes reformas da ordem humana. Máquinas de tecer, máquinas a vapor, cidades ideais ou novas dramaturgias” (Starobinski, 1994, p. 233).

É também no século XVIII que se firmam as bases para o individualismo. A preocupação com as liberdades individuais, com os direitos à propriedade e ao lucro, a valorização, a partir da consolidação da burguesia no poder, do trabalho como meio para se atingir a riqueza e do esforço individual como motor do desenvolvimento são alguns dos fatores que fortaleceram e estabeleceram o individualismo na modernidade. A construção de uma dimensão íntima e privada, da experiência do prazer, a vivência da solidão, bem como a legitimação do sujeito racional na filosofia, que por meio apenas do pensamento poderia aceder à Verdade, contribuíram de maneira decisiva para o individualismo, em termos econômicos, psicológicos e sociais, que tem início nos séculos XVII e XVIII e adquire fôlego no século XIX, quando movimentos importantes como o romantismo, o desenvolvimento do capitalismo e do liberalismo, aliados à Revolução Industrial irão reforçar o percurso do individualismo na modernidade.

 

As cidades modernas como espaço privilegiado para o exercício da liberdade: contribuições de Georg Simmel para pensarmos o sujeito urbano

Já no primeiro parágrafo de seu texto, Simmel afirma que “Os problemas mais profundos da vida moderna brotam da pretensão do indivíduo de preservar a autonomia e a peculiaridade de sua existência frente às superioridades da sociedade, da herança histórica, da cultura exterior e da técnica da vida” (Simmel, 2005 [1903], p. 577). Para o autor, que realiza palestra no ano de 1903, depois transformada em texto, é motivo de reflexão não apenas a constituição das grandes cidades como espaço privilegiado de convivência e sociabilidade na passagem dos séculos XIX para XX, como também entender o homem que vive nessas cidades, seu espírito, seus sentimentos, sua maneira de agir em um ambiente recente e pouco explorado na história da humanidade: as metrópoles.

Segundo Gilberto Velho, em comentário a esse texto de Simmel, o papel das cidades no surgimento das mudanças socioculturais que se apresentam para o indivíduo moderno não é meramente uma função de cenário, como um “receptáculo passivo”, mas funcionam como “produtora(s) de novas formas de sociabilidade e interação social”.  Esse papel ativo na constituição dos estilos de vida urbanos se deve, como ressalta o autor, ao papel desempenhado pelo capitalismo nas mudanças realizadas em todos os setores da vida social pós-Revolução Industrial. “Certamente foi uma das maiores transformações na história da humanidade, e é neste quadro que se desenvolvem as metrópoles moderno-contemporâneas” (Velho, 1995, p. 228).

A preocupação do sujeito em preservar sua autonomia (ou, podemos ler aqui, sua liberdade) no intenso meio urbano ocorre, segundo Simmel, como uma maneira de se proteger de uma série de características que a sociabilidade urbana lhe impõe: o desenraizamento, o encontro com incontáveis estranhos diariamente, a exposição constante a estímulos de todos os tipos, a velocidade, o vai-e-vem das calçadas.

“Assim, o tipo do habitante da cidade grande… cria um órgão protetor contra o desenraizamento com o qual as correntes e discrepâncias de seu meio exterior o ameaçam: ele reage não com o ânimo, mas sobretudo com o entendimento” (Simmel, 2005 [1903], p. 578).

O entendimento aqui seria uma intelectualização das reações dos indivíduos das grandes cidades, que se defenderiam assim das “coações” da metrópole. Ao intelectualizar aquilo que chega a si, o sujeito evitaria submeter-se a emoções e afetos inconstantes, reagindo de maneira “lógica”, “racional”, “intelectual” ao que se lhe apresenta.

Vemos aqui como o projeto filosófico da modernidade, de autonomia do sujeito centrado e racional, repercute nas práticas e nos valores compartilhados pelos habitantes das cidades grandes, atualizando o estilo de vida urbano. Velho sublinha tal característica das metrópoles, afirmando que essa maneira de viver nas cidades grandes, encontrável nas metrópoles já no início do século XX, é “a expressão mais radical dos processos de individualização da modernidade” (Velho, 1995, p. 232).

Uma das características marcantes da cidade grande –e muito valorizada por seus habitantes até hoje– é a possibilidade oferecida aos indivíduos de que eles sejam “livres”, e muito mais livres do que seriam numa cidade pequena ou no meio rural, por exemplo. Isso ocorre, em grande medida, porque o estilo de vida urbano tem particularidades que estimulam e preservam a privacidade e a individualidade de seus habitantes. Uma delas é o exercício da reserva do sujeito, que evita estabelecer relações muito íntimas com personagens do seu cotidiano urbano (como vizinhos, colegas de trabalho, transeuntes, prestadores de serviço com os quais interage etc.). Esse exercício da reserva, do recolhimento dos sujeitos para seus espaços privados de circulação, é uma das principais notas características da experiência de urbanidade inaugurada com as grandes cidades.

A outra particularidade do estilo de vida urbano –intimamente ligada à primeira– é a indiferença, ou a atitude blasée. “A essência do caráter blasé é o embotamento frente à distinção das coisas; não no sentido de que elas não sejam percebidas, como no caso dos parvos, mas sim de tal modo que o significado e o valor da distinção das coisas e com isso das próprias coisas são sentidos como nulos.” (Simmel, 2005 [1903], p. 581). Esse fenômeno é descrito por Simmel como próprio à cidade grande. O autor afirma, inclusive, que ele deriva de uma defesa fisiológica do indivíduo frente a tantos estímulos variados que o atingem. Podemos pensar, entretanto, que se trata de uma subjetividade urbana que está sendo educada, forjada, constituída a partir de condições de trabalho, de vínculos, de trocas inteiramente novas, e que essa constituição se dá num outro registro que não o fisiológico –no registro do pensamento.

Talvez por isso mesmo, para marcar esse outro registro distinto do fisiológico em que se dá a constituição do homem urbano, que o autor Hermano Vianna faça questão de ressaltar o quanto o poeta Fernando Pessoa distingue-se, em sua obra O Livro do Desassossego, da descrição do indivíduo blasé ou indiferente de Simmel:

“Em Fernando Pessoa a reação não cessa, sua vida mental continua no nível de agitação mais intenso. Não se trata mais de um indivíduo que tem os mesmos limites nervosos daqueles que Simmel pensava encontrar numa cidade pequena (e que por isso sofriam na transição para uma cidade grande). Fernando Pessoa coloca em cena outro tipo de indivíduo, que pode reagir intensamente a vários estímulos ao mesmo tempo, aceitando o desafio da metrópole e propondo um atalho para o desenvolvimento de novas culturas subjetivas” (Vianna, 1999, p. 112).

Ora, se tal atitude é possível e nos chega através da arte, certamente não estamos falando, ao pensarmos o homem urbano, de um efeito fisiológico, mas sim de um produto, de uma montagem, de uma construção de um novo tipo de pensamento da cultura moderna. É justamente porque as características dessa nova “vida do espírito” (reserva, autonomia, indiferença) são uma produção forjada no contexto social e econômico das grandes cidades, e não uma modificação das condições fisiológicas dos habitantes do espaço urbano, que podemos encontrar sujeitos que pensam a cidade e a habitam de outra maneira, como o faz Pessoa em sua poesia, por exemplo.

Ainda assim, compartilhamos da tese principal de Simmel, de que a cidade moderna produz e estimula a liberdade, a individualidade e a autonomia de seus habitantes. E ao fazê-lo, cria códigos de conduta, comportamentos, estilos de vida que não apenas preservam tais qualidades subjetivas mas também as tornam possíveis.

Além de tratar dessas modificações subjetivas que se passam no período em que escreve, Simmel se preocupa também com as possíveis consequências da valorização das qualidades do homem urbano na convivência no espaço urbano, seja para a vida em comum nas cidades, seja psicologicamente. O trecho seguinte ilustra com clareza, nas palavras do autor, essa dualidade, ou o “reverso dessa liberdade”:

“Pois a reserva e indiferença mútuas, as condições espirituais de vida dos círculos maiores, nunca foram sentidas tão fortemente, no que diz respeito ao seu resultado para a independência do indivíduo, do que na densa multidão da cidade grande, porque a estreiteza e proximidade corporal tornam verdadeiramente explícita a distância espiritual. Decerto é apenas o reverso dessa liberdade se, sob certas circunstâncias, em nenhum lugar alguém se sente tão solitário e abandonado como precisamente na multidão da cidade grande; pois aqui, como sempre, não é de modo algum necessário que a liberdade do ser humano se reflita em sua vida sentimental como um sentir-se bem” (Simmel, 2005 [1903], p. 585).

Da perspectiva de Simmel, no início do século XX, a solidão e o abandono seriam o preço que a liberdade cobraria dos cidadãos pela vida nas metrópoles. Ou, como ressalta Velho, o anonimato e a fragmentação da experiência social (Velho, 1995, p. 229). Para os sujeitos, preservar a liberdade seria um projeto de vida que admitiria a fragmentação das relações, aumentando a sensação de desfiliação dos sujeitos. Como vimos inicialmente com Tocqueville, é a igualdade dos sujeitos perante a lei garante, nas cidades modernas, que assegura a possibilidade de que cada um possa trilhar sua própria história, traçar seu próprio futuro, e descolar-se da tradição. Por outro lado, é justamente essa “desorientação” constitutiva das relações sociais que realça o sentimento de inadequação, de estranhamento, de inconformidade tão presentes entre os sujeitos modernos[B]. Como afirma Velho, “Na sociedade moderna o alto nível de especialização se, por um lado aumenta a aparente liberdade de escolha, por outro diminui, no mundo do trabalho, o campo possível de experiências individuais” (Velho, 1995, p. 229).

É importante ressaltar que esse descolamento da vida dos sujeitos de uma suposta tradição se dá no processo de constituição das cidades, no projeto de consolidação de uma sociedade moderna. Como ingrediente principal deste processo, temos a ascensão da economia capitalista e a divisão social do trabalho, em que a especialização dos trabalhadores desvincula o homem de uma compreensão e de uma integração mais plena do processo de produção e do trabalho em geral, tornando o indivíduo especialista em determinada função pontual, específica. Simmel fala do desenvolvimento, na cultura moderna, do “espírito objetivo” (Simmel, 2005 [1903], p. 588), isto é, da importância que a técnica e a especialização adquirem na cidade, em detrimento dos vínculos pessoais e tradicionais. E se há um ingrediente que corporifica essa mudança e esse novo “espírito objetivo”, esse ingrediente é o dinheiro:

 “Na medida em que o dinheiro compensa de modo igual toda a pluralidade das coisas; exprime todas as distinções qualitativas entre elas mediante distinções do quanto; na medida em que o dinheiro, com sua ausência de cor e indiferença, se alça a denominador comum de todos os valores, ele se torna o mais terrível nivelador, ele corrói irremediavelmente o núcleo das coisas, sua peculiaridade, seu valor específico, sua incomparabilidade” (Simmel, 2005 [1903], pp. 581-582).

O valor das coisas –e não só das coisas, mas dos serviços, dos vínculos, das pessoas– ganha, assim, uma medida comum, através da qual se pode compará-las. Neste cenário, é importante ressaltarmos, a concepção de liberdade difundida amplamente na sociedade aproxima-se cada vez mais dos valores defendidos pelo liberalismo econômico, como discutimos exaustivamente em nosso trabalho anterior (Mattos, 2006). Assim, ao almejarem a liberdade para si próprios, os sujeitos urbanos agarram-se a valores claramente derivados do vocabulário econômico: desejam a liberdade de escolha (a se realizar no consumo), a independência pessoal (a se concretizar em bens materiais e na não-dependência do outro para alcançar sua estabilidade de vida), a realização pessoal (materializada em bens e serviços a serem consumidos), etc. Ainda mais importante do que percebermos a promessa do liberalismo econômico implícita em cada um desses desejos modernos, é entendermos que essa aparente “evidência” do que deve querer e buscar um indivíduo para ser feliz tem suas raízes no discurso econômico vigente, que pretende objetivar as relações a partir de um referencial comum. Como resume Simmel, “Pois o dinheiro indaga apenas por aquilo que é comum a todos, o valor de troca, que nivela toda a qualidade e peculiaridade à questão do mero quanto” (Simmel, 2005 [1903], p. 579).

 

Considerações finais

Interessou-nos explorar e organizar as ideias apresentadas por Georges Simmel e seus comentadores acerca da experiência subjetiva do espaço urbano, dos valores e das relações que aí se praticam e atualizam, sempre procurando perceber de que maneira o autor, ao falar do início do século passado, também está falando de problemas que se impõem a nós e a nossas metrópoles contemporaneamente, dado que ele escreve sobre questões que, a nosso ver, se acirraram, se exacerbaram e se tornaram mais críticas na atualidade, estando muito distantes de desaparecer enquanto problemas. Seja na indiferença vivida ao extremo na dinâmica das cidades, seja na violência contra os grupos menos favorecidos economicamente, na tolerância sempre tênue no convívio com a diferença nos espaços públicos ou comuns, ou na profunda alienação dos indivíduos em seus espaços privados, em todos esses problemas podemos identificar as temáticas trabalhadas por Georges Simmel em seu texto de 1903. Cabe a nós pensá-las, a partir da psicologia, com o auxílio de um referencial teórico que não isole ainda mais os sujeitos em suas experiências, tantas vezes angustiantes, na cidade, mas que procure entender o momento atual à luz de discussões mais amplas, no campo da economia, da sociologia e da história. A nosso ver, o texto de Georges Simmel traz um importante alerta para os estudos psicológicos: que não devemos tomar como evidente a experiência individual na cidade, sem pensar o contexto em que essa experiência se consolidou e o percurso que percorreu até os dias atuais.

 
 
 

Referências

Cassirer, E. (1997). A filosofia do Iluminismo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP.

Mattos, A. (2006). Fazer escolhas, ‘ser você mesmo’, ‘ter personalidade’: um estudo sobre a experiência de liberdade de jovens cariocas na contemporaneidade. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

Mattos, A. & Castro, L. (2008). Ser livre para consumir ou consumir para ser livre? Psicologia em Revista, 14(1), 151-170.

Simmel, G. (2005 [1903]). As grandes cidades e a vida do espírito. Mana, Estudos de Antropologia Social, 11(2), 577-591.

Starobinski, J. (1994). A invenção da liberdade, 1700-1789. São Paulo: Editora da UNESP.

Tocqueville, A. (2000 [1840]). A democracia na América: sentimentos e opiniões. Vol. II. São Paulo: Martins Fontes.

Velho, G. (1995). Estilo de vida urbano e modernidade. Estudos Históricos, 8(16: Cultura e História Urbana), 227-234.

Vianna, H. (1999). Ternura e atitude blasé na Lisboa de Pessoa e na Metrópole de Simmel. In G. Velho (Org.), Antropologia urbana: cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

 

 
 
* [A] amanamattos@gmail.com
 
* [B] Nesse sentido, vale ressaltar a intensa produção literária e filosófica do existencialismo francês do século XX, que tematizou principalmente a liberdade como experiência inerradicável do homem moderno e urbano, assim como o seu sentimento correlato de angústia (ou a “náusea” sartriana), uma vez que a experiência da liberdade é sempre desconcertante, sempre lançando o homem no vazio da indeterminação.