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Número 23 – Artículo 5

Ampliar o presente da psicologia social: contribuições de uma sociologia das ausências[A]

 

Claudia Mayorga[B]

Universidade Federal de Minas Gerais

Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

 

 

Resumo

Este texto propõe uma reflexão acerca da situação da psicologia social na atualidade e possibilidades para o futuro a partir do referencial da sociologia das ausências (Santos, 2002). A partir de uma concepção de futuro divergente do paradigma tradicional do conhecimento, buscamos pensá-lo a partir da ampliação do presente identificando aspectos que têm ocupado lugares secundários em vários debates da disciplina: a interdisciplinariedade da psicologia social, as perspectivas metodológicas de pesquisa-intervenção, os critérios de avaliação da produção da área a partir dos impactos sociais da mesma, as produções oriundas de campos periféricos. Concluímos que se o desejo de controle do futuro tem nos levado ao desperdício de experiências, ampliar o presente aparece como possibilidade de rechaço ao império do pensamento único, o que implica reconhecer a pluralidade de atores e experiências no cenário da produção, validação e transformação do pensamento, o que parece apontar para a democratização das nossas produções, intervenções, por fim, relações.

Palavras-chave: psicologia social, sociologia das ausências, democratização.

 

Resumen

Se reflexiona acerca de la situación de la psicología social en la actualidad y de las posibilidades para el futuro a partir del referencial de la sociología de las ausencias (Santos, 2002). Partiendo de una concepción de futuro distinta de la del paradigma tradicional de conocimiento, buscamos pensarlo a partir de la ampliación del presente identificando aspectos que han ocupado lugares secundarios en varios debates del área: la interdisciplinariedad de la psicología social, las perspectivas metodológicas de la investigación-acción, los criterios de evaluación de la producción del área partiendo de sus impactos sociales y las producciones desde campos periféricos. Concluimos que si el deseo de controlar el futuro nos ha llevado al desperdicio de las experiencias, ampliar el presente emerge como posibilidad de rechazo al imperio del pensamiento único, lo que implica reconocer la pluralidad de actores y experiencias en el escenario de la producción, validación y transformación del pensamiento, lo que parece apuntar hacia la democratización de nuestras producciones, intervenciones y, en suma, relaciones.

Palabras clave: psicología social, sociología de las ausencias, democratización.

 

 

Sobre as formas de pensar o futuro

O convite para traçarmos os cenários de futuro da psicologia a partir das instituições científicas e políticas da área nos parece um exercício bastante instigante e importante[C]. Primeiro porque consideramos fundamental que essa reflexão e debate incluam a diversidade de perspectivas e olhares da disciplina; o que também se relaciona com o fato de podermos conceber o futuro a partir de pontos de partida variados –sejam eles epistemológicos, políticos ou institucionais.

Em uma análise clássica do campo da economia, intitulada The Year 2000, Kahn e Wiener (1967, pp. 262-264) definem cenários como a descrição detalhada de eventos hipotéticos em sequencia que pode levar, de maneira plausível, a uma situação futura. Desenhando um cenário suficientemente amplo, poderíamos segundo essa perspectiva, antecipar a evolução dos eventos e identificar as escolhas necessárias para se trilhar uma determinada trajetória (Souza & Lamounier, 2006). Este é um termo também bastante utilizado no campo do planejamento institucional: cenários podem ser “visões parciais e internamente consistentes de como o mundo será no futuro e que podem ser escolhidas de modo a limitar o conjunto de circunstâncias que podem vir a ocorrer” (Porter, 1991, p. 13) ou ainda “ferramenta para ordenar a percepção sobre ambientes alternativos futuros, nos quais as decisões pessoais, institucionais ou da organização podem (devem) ser cumpridas” (Schwartz, 1991, p. 43).

Ora, o que está pressuposto nessas definições é a perspectiva do paradigma tradicional do conhecimento, levado à sua radicalidade nos campos da economia e da administração, que concebe e apresenta o pensamento como metódico, ordenado em início, meio e fim, com finalidade de previsão e controle do futuro. Tal perspectiva, como sabemos, é um dos pilares do projeto da ciência moderna, que imbuído de esperança no progresso e bem-estar a ser alcançado pelo desenvolvimento científico se propôs a dominar e controlar a natureza e tal proposta tinha como pressuposto, a ideia de que o futuro é infindável. É impossível compreender a história do Ocidente e também da democracia, da ciência, da razão, da liberdade, da igualdade, da justiça e do desenvolvimento social sem fazer referência à ideia de progresso. A perspectiva de um futuro luminoso promovido pelo desenvolvimento do conhecimento científico marca as sociedades ocidentais e é importante analisar quais as consequências desse pensamento, principalmente no que se refere a um amortecimento das contradições que esse desenvolvimento produziu e continua produzindo nas nossas sociedades.

Assim, traçar os cenários da psicologia a partir dessa perspectiva seria conceber a história dessa disciplina como um processo linear, desconsiderando em grande medida, as rupturas, contradições e tensões; aspectos estes que nos levam a problematizar a possibilidade de chegada em um futuro pré-definido e controlado.  Nessa concepção, não há muitos espaços para o futuro desejável, para a dimensão das utopias, já que estão sempre marcadas por impossibilidades metodológicas, pela sua dimensão e intangibilidade no presente, ou como nos dirá Cunha (2007) por uma instantaneocracia que muitas vezes nos leva à ação sem reflexão, acreditando que o futuro será a mera repetição ou melhoria do que já vivemos. Mas talvez essa seja a utopia do projeto da modernidade: uma utopia totalitária, da sociedade perfeita, sem falhas.

No que se refere às desigualdades sociais, por exemplo, encontraremos uma ênfase numa perspectiva que insiste, como dirá Sousa (2006), em analisar as mesmas a partir de suas consequências e efeitos, sem atentar para as razões e causas das mesmas, limitando-se à abordagem da ponta do iceberg, acreditando ou fazendo acreditar que está tomando os problemas como um todo. Tal ênfase caracteriza uma miopia recorrente nas análises acerca da sociedade que leva, frequentemente, a uma visão acrítica da realidade e a uma naturalização das desigualdades sociais.

Assim, a concepção de futuro com base no que Santos (2002) chamou de monocultura do tempo linear, terá consequências marcantes para nossas sociedades. A monocultura do tempo linear definida como uma das lógicas da razão moderna, chamada por Leibniz de razão indolente e utilizada por Santos, pressupõe que a história tem um sentido único. Tal afirmação nega a pluralidade e caminha para solidificação e naturalização de posturas hegemônicas, promovendo a invisibilização de conflitos, tratando desigualdades como simples diferenças naturais e reforçando o que Santos denomina de ausências: experiências sociais, saberes diversos que ora são invisibilizados, ora são incluídos ou considerados a partir de relações de subalternidade; são experiências sociais desperdiçadas, porque ocultadas ou desacreditadas (Santos, 2002).

Tal concepção baseada na monocultura do tempo linear levou o cientista político Fukuyama (1992), por exemplo, a anunciar que o capitalismo e a democracia burguesa representariam o ápice da História da Humanidade. No polêmico ensaio “O fim da história”, Fukuyama sustenta que o século XX seria o apogeu da civilização, com a desintegração da União Soviética simbolizando o triunfo da democracia liberal ocidental sobre todos os outros sistemas. A derrocada do socialismo como alternativa global teria deixado, segundo ele, apenas um nacionalismo residual, incapaz de aglutinar um projeto para a humanidade, e o fundamentalismo islâmico. Este, na visão de Fukuyama, ficaria confinado ao Oriente e aos países periféricos[D]. A partir dessa perspectiva, vemos que tal pensamento hegemônico considera que experiências não identificadas com a democracia liberal são compreendidas como atrasadas, subdesenvolvidas, primitivas. Mas como isso se apresenta no campo da psicologia? Discutiremos tal problema adiante.

Outra consequência importante da monocultura do tempo linear se refere à ideia de um progresso sem limites o que leva à instauração de um futuro infinito, porém sempre idêntico ao que traz à luz a indolência da razão proléptica[E], a de supor o futuro e por isso abdicar de pensá-lo. Assim, esta razão julga que sabe tudo sobre o futuro e, portanto não precisa pensá-lo e “o concebe como uma superação linear, automática e infinita do presente” (Santos, 2002, p. 32). Junte-se a isso que a razão moderna se estruturou de tal maneira que de forma metonímica, tende a compreender o todo das experiências sociais a partir de uma parte específica –a que se quer difundir de forma hegemônica, a ponto de eliminar- seja através da deslegitimação, desautorização, do desprezo, da violência, da negação do conflito – outras experiências[F]. Experiências essas, desperdiçadas. Todo o processo e movimento de crítica à modernidade buscará anunciar e denunciar as problemáticas existentes nessa concepção linear de tempo e progresso. Deleuze (1995), por exemplo, admite um tempo múltiplo, caótico e policrônico e enfatiza a existência de vários mundos possíveis em um único mundo. Para isso, em lugar de uma linha do tempo, Deleuze vê um emaranhado do tempo; em lugar de um rio do tempo, o autor vê um labirinto do tempo; não mais uma ordem do tempo, mas uma variação infinita.

Diante disso, questionando o desperdício da experiência e a naturalização das hierarquias sociais, Santos (2002) vai sugerir que necessitamos apostar na criatividade epistemológica, que nos leve a inventar outra racionalidade e na criatividade democrática, que nos leve à ampliação e reconfiguração permanente do espaço público. Para tanto, o autor sugere a necessidade de realização de dois movimentos principais: ampliação do presente –através de uma sociologia das ausências e a redução do futuro- através da sociologia das emergências.

Buscaremos, a seguir, pensar o futuro da psicologia a partir da ampliação do presente no campo da psicologia social, isto é, como dito anteriormente, buscaremos identificar pontos desta disciplina que, por diversos motivos, ocupam lugares secundários em vários debates da área. Para tanto, é fundamental um exercício de auto-reflexividade da própria psicologia social e da associação que no Brasil, há mais de 25 anos, vem buscando possibilitar canais de debate e ação no campo da psicologia social: a Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO). Tomar a nós mesmos como objeto da reflexão pode possibilitar um posicionamento distinto da ilusão ideológica (Montero, 1994) de que o futuro é a consequência direta e não crítica do que vivemos no presente.

Para realizar tal tarefa, identificamos quatro ausências traduzidas aqui como ocultamentos ou experiências desacreditadas, recorrentes em nossa disciplina. Acreditamos que explicitá-las, pode contribuir para se pensar e fazer o futuro da psicologia e da psicologia social que não são nada certos nem previsíveis. Contudo, é preciso, segundo Santos (2002), substituir o vazio do futuro fruto da perspectiva do tempo linear, por um futuro de possibilidades plurais e concretas –ao mesmo tempo utópicas e realistas– construídas no presente, através das atividades de cuidado.

Assim, os ocultamentos ou experiências desacreditadas que trabalharemos a seguir são identificadas como: a interdisciplinariedade da psicologia social, as perspectivas metodológicas de pesquisa-intervenção como formas legítimas de construção do conhecimento, os critérios de avaliação da produção em psicologia social a partir dos impactos sociais da mesma, as produções em psicologia social oriundas de campos periféricos no Brasil.

Pensamos que dessa maneira, poderíamos contribuir para a construção dos cenários de futuro da psicologia, futuro que interessa a todos e a cada um de nós – é importante que reconheçamos a pluralidade das experiências sociais, para a partir daí, construirmos as nossas expectativas sociais para o futuro.

Identificando algumas ausências da psicologia social: ampliando o presente

 

A interdisciplinariedade da psicologia social

O debate acerca das origens psicológicas e sociológicas da psicologia social vem sendo realizado recentemente por alguns autores da área no Brasil (Sass, 2007; Jacó-Vilela, 2007; Arantes, 2005) e fora do Brasil (Farr, 1996; Estramiana, 1995). As discussões sobre se a psicologia social deveria ser uma especialidade da psicologia acirraram essa discussão nos últimos anos.

Gostaríamos de contribuir com esse debate a partir de um outro caminho de reflexão, mas estreitamente relacionado com o apresentado anteriormente e para isso lançamos a questão sobre os diversos sentidos do social da psicologia social.  Identificados que para essa pergunta encontram-se respostas diversas: o social da psicologia social frequentemente é compreendido como um lugar ou território; o social da psicologia social, não pode ser compreendido sozinho e se refere a um ponto de vista (Crespo, 1995).

Frequentemente nos deparamos, em diversos contextos -como nos cursos de psicologia, nos debates acadêmicos sobre determinados temas, quando o psicólogo social é chamado a contribuir- com a ideia de social como um lugar.  O social é frequentemente compreendido como um lugar externo a cada um de nós, onde vez ou outra vamos pesquisar, conhecer, atuar. Fazemos pesquisas e intervenções no e sobre o social, que no Brasil, frequentemente é associado às periferias, aos contextos de grupos minoritários. Assim, o social é um lugar pra onde posso ir e de onde posso sair. A partir desse ponto de vista, as concepções teóricas e metodológicas desse pesquisador ou profissional que entra e sai do social estão ancoradas na psicologia –o social da psicologia social seria um lugar de atuação do psicólogo, como poderia ser a clínica, a escola, a empresa. Muitas vezes estudantes, profissionais, inspirados pela compartimentação do conhecimento e por perspectivas individualistas, frutos do cientificismo moderno, perguntam sobre qual nossa linha dentro da psicologia e frequentemente saem muito frustrados com a resposta: psicologia social; afinal, compartilham de uma ideia de que o social é um lugar e não um ponto de vista, com concepções teóricas e metodológicas, com teorias sobre a sociedade e a relação indivíduo-sociedade.

Mas se o que propomos aqui é a realização de uma sociologia das ausências, o que está sendo negado, ocultado ou desvalorizado nessa experiência? Resposta: a interdisciplinariedade da psicologia social. Esse fenômeno poderia ser explicado por alguns elementos: o primeiro deles se refere ao próprio movimento da psicologia social brasileira e latino-americana dos anos 60 e 70, que se propunha, a trabalhar com grupos até então excluídos do campo de pesquisa e intervenção da psicologia social tradicional. Será essa postura crítica o ponto de partida na fundação da ABRAPSO. Para trabalhar com os grupos excluídos era necessário romper com o individualismo metodológico e com a falsa e impossível neutralidade científica característicos do cientificismo moderno. Assim, outras características como militância, compromisso político com a transformação e imersão nos contextos das periferias eram elementos fundamentais do fazer do psicólogo social naquele momento de crise e de crítica. Mas mais do que isso, era fundamental reinventar a psicologia –o convite não era o de aplicar a psicologia (individualista, capitalista, etc.) em contextos de exclusão, mas o de reinventar a própria psicologia.  Sabemos que a partir do final dos anos 80 a psicologia social brasileira e latino-americana avançaram na construção de um corpo teórico, conceitual e metodológico próprios, se institucionalizaram e toda a crítica realizada à psicologia standard teve consequências importantes no campo psi. Contudo, sabemos que essa perspectiva é frequentemente desqualificada pelas perspectivas mais duras sobre ciência –e não precisamos ir para as ciências naturais para encontrarmos esse ponto de vista.

Outro aspecto que pode nos ajudar a compreender uma certa hegemonia de concepções do social como lugar, é o próprio papel da psicologia social dentro da psicologia. Sabemos que as formas como se conta a história de uma disciplina –o que se explicita e o que se nega– não são ingênuas. Assim, nos deparamos com uma corrente hegemônica na psicologia que identifica a psicologia social, exclusivamente, como um ramo da psicologia. Ora, isso se manifesta em diversos níveis: o primeiro deles se refere à negação das origens interdisciplinares da psicologia social que em grande medida é a negação da interseção entre psicologia e sociologia –mas também filosofia- nas origens da disciplina. Tal negação nos levaria a contar a história da psicologia social vinculada unicamente à história de uma psicologia científica, sendo pouco abertos para contribuições de relevância como de Mead, Goffman, Simmel, Oliveira Vianna, Florestán Fernandes para citar alguns, que contribuíram enormemente na constituição de um pensamento psicossocial fora e também dentro do Brasil. Contar a história dessa maneira tem levado a posicionamentos os quais o social da psicologia social se resume ao compromisso social da disciplina psicologia, identificando a psicologia social como um campo de aplicação daquela. Esse ocultamento pode trazer consequências a nosso ver negativas para a psicologia que em alguns momentos se apresenta –na academia, na sociedade- como perspectiva totalizante e pouco crítica.

Outro possível motivo da negação da interdisciplinariedade se deve ao fato de que a crise da psicologia social, a crítica ao paradigma moderno não rompeu totalmente com o modelo dualista entre sujeito e mundo, uma das características mais fortes do cientificismo moderno. Continua bastante presente no nosso fazer científico a ideia de que sujeito e mundo são entidades totalmente diferenciadas, o que justificaria disciplinas diferenciadas para lidar com esses dois objetos: a psicologia e a sociologia. Assim, a radical separação entre sujeito e mundo presente na modernidade, que constituiu uma certa hegemonia de um social como um lugar que deve ser conhecido, controlado, dominado, está fortemente vigente entre nós e segue considerando o indivíduo como o centro das compreensões do mundo.

Consideramos que fazer pesquisa e intervenção em psicologia social, não é simplesmente escolher um objeto nesse lugar externo, o social. Subir o morro, pesquisar sobre meninos e meninas de rua, realizar intervenções junto a familiares de usuários de drogas, não garante, por si só, uma abordagem psicossocial. Pode-se muito bem trabalhar com esses grupos acima citados, mas ter como fundamento psicologias de cunho individualizante, às vezes patologizante, etc. Assim, o social da psicologia social não é um lugar, mas sim um ponto de vista, uma forma de analisar a realidade que deve, a nosso ver, ultrapassar as barreiras da disciplina psicologia, mas sem deixar de dialogar com a mesma. Negar essa interdisciplinariedade poderá nos levar a um reducionismo psi. Reconhecer a não totalidade e a incompletude desse saber, poderá possibilitar diálogos diversos e ampliação das nossas formas de compreender e atuar na realidade e consequentemente, o futuro das nossas disciplinas. Desse modo, as fronteiras entre os objetos, antes bem delimitadas, vão se tornando gradativamente menos definidas e vão dando lugar à ideia de que estes se entrecruzam em teias complexas –para as quais não podemos fechar os olhos.

A pesquisa-intervenção como forma legítima de produção do conhecimento

A segunda ausência que identificamos no campo da psicologia e psicologia social se refere mais diretamente a aspectos metodológicos, mas não exclusivamente a eles. Desde o nascimento da ciência identificamos debates e embates que revelam/revelaram a preocupação em definir o que é o conhecimento científico; o mesmo nasce se diferenciando de outros saberes como o da religião, do senso comum e também o da filosofia, mas desde o início, essa definição se dará, em grande medida, através do debate acerca do método. Perspectivas racionalistas, empiristas, interacionsistas e construcionistas e também quantitativistas e qualitativistas se constituem em tentativas de responder a seguinte pergunta: como conhecer? As respostas serão variadas, mas será no século XX que uma outra dimensão da produção do conhecimento ganhará força (uma vez que já estava presente desde o século XVIII): para quê conhecer? Até onde o conhecimento científico tem nos levado? A que preço? Aquela esperança do progresso e bem estar para os quais a ciência nos levaria, teria sido alcançado de fato?

Revisitando a história da psicologia social no Brasil e na América Latina identificamos que essa preocupação com o “para quê” da ciência, preocupação de claro cunho ético e político, repercutirá na preocupação com o “como” fazê-la. A constatação de que as teorias importadas dos Estados Unidos e Europa estavam longe de alcançar a compreensão e também propiciar a transformação das realidades vivenciadas nos países da América Latina durante os anos 60 e 70 levou a uma certa efervescência de produção em psicologia social em estreito diálogo com pensadores de outras disciplinas, mas não exclusivamente. Fals Borda, Paulo Freire, Martin-Baró, Silvia Lane, Maritza Montero e muitos outros não exclusivamente do campo da psicologia marcaram o momento da crise da psicologia social na América Latina e no Brasil que não era somente uma crise epistemológica e teórica, mas fundamentalmente uma crise política. Assim, a psicologia social na América Latina nasce de uma dupla insatisfação: com o modelo teórico metodológico desenvolvido pela psicologia social até aquele momento, predominante, modelo experimentalista que colocava o pesquisador numa falsa posição objetiva e neutra e a insatisfação com as situações sociais do entorno: os governos autoritários, as péssimas condições de vida de grandes grupos da população, seus sofrimentos, problemas e a necessidade urgente de promover mudança social (Mayorga, 2007).

Pesquisa-ação, pesquisa-participante, observação-participante foram algumas das proposições metodológicas centrais nesse momento. Todas, em níveis diferenciados, partem do pressuposto de que conhecer é interagir e é esta dimensão que é constantemente desqualificada em muitos espaços de produção em psicologia e psicologia social, mas também junto a outras disciplinas. Identificamos a recusa de uma reflexão sobre a relação entre ciência e política como postura hegemônica dentro dos cenários da produção acadêmica que raramente inclui em suas análises o próprio processo de produção do conhecimento; sabemos que historicamente a ciência se caracterizou como instrumento e prática de controle, disciplina e patologização de experiências diversas e consideramos que as propostas de pesquisa-intervenção têm buscado colocar esse ponto como central em suas análises. A pesquisa-intervenção nos traz questões e desafios que estão sendo pesquisados e teorizados e esse é um exercício necessário, mas muitas vezes invisibilizado ou desqualificado tanto internamente quanto externamente ao campo psi.

As perspectivas de pesquisa-intervenção, como dito anteriormente, partem da análise da interação entre sujeitos como ponto crucial e se manifestam tanto no caráter dialógico e participativo nos processos de produção de conhecimento sobre e com sujeitos, grupos e instituições investigados quanto na possibilidade de discussão e debate acerca dos resultados com os mesmos. O que constatamos muitas vezes, é que pesquisas-intervenções, são realizadas preferencialmente nas universidades junto aos programas de extensão e não de pesquisa e sabe-se que institucionalmente, o eixo da extensão é frequentemente avaliado como menos acadêmico do que o da pesquisa. Fechar os olhos para essa dimensão é, a nosso ver, continuar insistindo na objetividade do conhecimento como distanciamento, no objetivo do mesmo como sendo o controle.

Não gostaríamos aqui de negar a importância de trabalhar com perspectivas metodológicas multivariadas. Contudo, essa reflexão coloca em pauta uma vez mais, o abismo entre teoria e prática que resulta, em parte, de uma supervalorização de conhecimentos construídos no sistema socialmente reconhecido de instituições acadêmicas e dificuldade de se problematizar de maneira crítica a relação com os valores e decisões tomadas em contextos socioculturais distintos (Rozemberg, 2007).

Avaliação da produção da psicologia social a partir dos seus impactos sociais

A terceira experiência em certa medida desacreditada e identificada no nosso exercício iniciante de ampliação do presente se refere aos critérios utilizados para avaliar o conhecimento produzido em psicologia e psicologia social e este ponto tem interseções com a discussão que foi feita no item anterior. Sabemos que instituições de fomento à pesquisa, programas de pós-graduação, instituições científicas da área da psicologia, a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP) têm se deparado com intensas discussões sobre a construção dos critérios de avaliação da produção científica brasileira. A produção dos pesquisadores da área tem sido o grande parâmetro de avaliação o que me parece bastante razoável até certo ponto. A grande dificuldade é fazer tal avaliação considerando a relevância deste conhecimento para a sociedade. Esta não é uma tarefa simples, mas que não pode ser deixada de lado, porque complexa. Estão em jogo muitos parâmetros: o que é ser relevante para a sociedade, bem como com que formas vamos medir isso. O que não se pode admitir, é que a questão da relevância social ora seja colocada como impossível de ser considerada, pois é impossível medi-la devido a diversos motivos financeiros ou referentes à natureza do objeto que está sendo avaliado (talvez o seja, mas precisamos lançar mão da nossa criatividade epistemológica!), ora como algo que não nos interessa neste momento da história, como se esta fosse uma demanda ultrapassada.

Gostaríamos de ressaltar que consideramos a avaliação da produção científica como fundamental para a qualificação das produções na área e, portanto não manifestamos aqui uma postura anti-avaliação. Contudo, nos preocupa que percentuais, números e contas que tendem a ser os parâmetros das nossas produções, não sejam radicalmente (no sentido de irmos até a raiz!) problematizados. O que os números nos possibilitam ver? Mas o que eles não nos permitem visualizar? O quê mais os números poderiam explicitar que não o fazem? Como estão sendo publicizadas nossas produções, com que qualidade e, sobretudo, qual o impacto social desta produção? A produção científica está virando uma grande competição onde talvez tudo valha para estar entre os altos números? Será que o know how técnico está tornando dispensável a discussão sobre a ética?

Ora, se por um lado a ciência foi compreendida como um conhecimento que se constrói contra o senso comum em um processo de ruptura epistemológica com ele, podendo levar á superação das opiniões, das formas falsas de conhecimento para tornar possível o conhecimento científico, racional e válido e consequentemente recusando as orientações para a vida prática decorrentes do mesmo senso comum; por outro lado, ela foi e vem sendo compreendida como prática social. Tal perspectiva se baseia numa prática científica compreendida como prática intersubjetiva, que se justifica “teórica e sociologicamente pelas consequências que produz na comunidade científica e na sociedade em geral” (Santos, 1989). Assim, a ciência não está separada da sociedade em que é produzida e que pretende analisar, o que justifica a preocupação com a relevância social dos saberes e práticas que estamos produzindo. Mas para isso, consideramos importante que outros atores participem do processo de avaliação da produção científica. Não sabemos como isso pode se concretizar, mas da mesma forma que no campo das políticas públicas começou-se a lançar mão da participação da população e diversos setores da sociedade na avaliação da sua implementação por que um processo com esses mesmos fundamentos não poderia acontecer no campo da ciência?

Consideramos, portanto, que essa questão como colocada acima, exige a inclusão de outros atores no debate sobre critérios e formas de avaliação de nossas produções; atores que possam representar diversos setores da sociedade. Claro está, que para que isso aconteça, deve-se reconhecer na sua radicalidade, primeiramente, a não totalidade do conhecimento científico; a necessidade de estabelecermos relações horizontais com os diversos setores e saberes da sociedade e por fim, muita criatividade democrática e epistemológica, além de vontade política para que essas ideias virem prática!

Talvez, entre todas as ausências destacadas anteriormente, essa seja a mais difícil de se enfrentar e reconhecer, mas talvez a que nos faça refletir de forma mais profunda acerca de uma psicologia e psicologia social edificante.

Produções, saberes e olhares da psicologia social em regiões periféricas

Por fim, no que se refere à diversidade de produção em psicologia social, não podemos negar que esta é constantemente classificada e avaliada a partir do pólo sudeste/sul e a partir de outras classificações sócio-geográficas como urbano/não urbano ou capitais dos estados/interior dos mesmos. Essas dicotomias, claramente valorativas, onde o não-sudeste, não-sul, não-urbano, não-grandes centros são classificados, a partir da monocultura do tempo linear, como experiências atrasadas, não qualificadas que mais cedo ou mais tarde deverão se encaixar dentro dos parâmetros definidos por aqueles do centro. Isso demonstra que o projeto de progresso e desenvolvimento da área estão em grande medida prescritos e frequentemente não reconhecem experiências e saberes periféricos como interlocutores legítimos na construção desse futuro.

Não nego de forma alguma que existam iniciativas que busquem perfurar essas lógicas, mas estas não estão dentro dos marcos das perspectivas hegemônicas. Essas dicotomias fazem dobradinhas com outras tantas da modernidade, que na simetria que aponta para uma relação horizontal, oculta uma relação vertical. Assim, associado com o não-sudeste/sul, não urbano, etc. estão as figuras do atrasado, sem cultura, primitivo, não racional, não modernizado, não civilizado, significados que são constantemente naturalizados. E elas se reproduzem nos contextos acadêmicos!

Vale a pena pensar que o que está em jogo nessas lógicas de invenção do Outro é a consolidação de um modelo eurocêntrico de sujeito do conhecimento e também de racionalidade e normalidade. Assim, o que esse aspecto denuncia é que continuamos repetindo lógicas coloniais que se reproduzem nas diversas hierarquias a partir das quais organizamos a produção do conhecimento no Brasil.

Mas como pensar as experiências e saberes de psicologia e psicologia social no interior do Brasil: interior de Minas Gerais, região Centro-Oeste, Região Norte como algo que não se reduza a experiências e saberes que ainda não alcançaram um certo caminho prescrito de reconhecimento? Pensar o futuro é pensar formas de reconhecimento dessas experiências que não sejam através do ocultamento e do descrédito. Sabemos que não é uma tarefa simples, pois essa reprodução das ausências se encontra em diversos espaços sociais –na cultura, na literatura, nas formas de lazer, nos meios de comunicação e na ciência. Muitas vezes o caminho apresentado é o da ampliação das formas de comunicação entre o centro e as periferias… muitas vezes traduzidas em formas mais eficazes do modelo do centro chegar até as periferias e não através de um debate/interação de fato –debate que não abafe os conflitos, não tenha uma visão ingênua acerca das diferenças e procure identificar o que a periferia pode ser que não simplesmente a ausência do centro. Mas para que isso possa se concretizar é fundamental reconhecer o nosso próprio ponto de vista como incompleto; não total.

Para concluir

Apresentamos algumas reflexões sobre o presente da psicologia social. Consideramos que é importante enfrentar os pontos acima destacados –e provavelmente existam outros dos quais não tratamos– considerando que o futuro não consiste na mera continuidade do presente, ou melhor, continuidade daquilo que reconhecemos como legítimo no presente. Temos constituído ausências nas nossas diversas interações acadêmicas e institucionais –o exercício de auto-reflexividade nos mostra isso. Mas se a previsão e desejo de controle do futuro tem nos levado ao desperdício das experiências, ampliar o presente aparece como possibilidade de rechaço ao império do pensamento único –reconhecer a diversidade de atores e experiências no cenário da produção, validação e transformação do pensamento parece apontar, pelo menos provisoriamente, para a democratização das nossas produções, intervenções, por fim, relações. Mas não gostaríamos de repetir aqui, um certo discurso acerca das diversidades, que defende, com uma intenção, a nosso ver, pseudo-democrática, uma pluralidade de experiências e saberes sem reconhecer que entre eles existem tensões, antagonismos e disputas, frequentemente invisibilizados pela ideologia do pensamento único. E apontar isso é reconhecer que o conflito é condição de possibilidade para qualquer tipo de consenso.

Referências

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* [A] Este artículo se encuentra publicado em la revista Pesquisas e Práticas Psicossociais 7(1), São João del-Rei, janeiro/junho 2012. Agradecemos a los editores su autorización para reproducirlo.

* [B] mayorga.claudia@gmail.com

* [C] Parte dos argumentos deste texto foi apresentada no VI Encontro Nacional da Associação Brasileira de Ensino em Psicologia (ABEP), que aconteceu em Belo Horizonte/MG, em 2008, como convite para refletir e debater acerca dos cenários de futuro para a Psicologia a partir do olhar das entidades de Psicologia, neste caso, a Associação Brasileira de Psicologia Social/ ABRAPSO.

* [D] A tese do fim da história foi revisto por Fukuyama em artigo para o jornal britânico The Guardian.

* [E] Santos (2002) identifica a indolência da razão manifestada de quatro maneiras distintas: razão impotente (determinismo, realismo), razão arrogante (livre arbítrio, construtivismo), razão metonímica (a parte tomada pelo todo) e razão proléptica (o domínio do futuro sob a forma do planejamento da história e do domínio da natureza).

* [F] Cabe perguntar por que uma razão tão limitada veio a ter tamanha primazia nos últimos duzentos anos. Para essa discussão, ver Santos (2002).