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Número 23 – Artículo 3

Equidade só no papel?

Formas de preconceito no Sistema Único de Saúde e o princípio de equidade

 

Roberta Andrea de Oliveira[A]

Alzira Sueli Gellacic

Aline Santana Zerbinatti

Fátima Edmundo de Souza

Juliana Alves Aragão

Instituto de Saúde

São Paulo, Brasil

 
 

Resumo

Práticas de preconceito ocorridas nos serviços de saúde geram grande impacto na concretização da equidade dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Neste sentido, o presente estudo discute o princípio de equidade do SUS em relação ao preconceito, a partir de exemplos de situações de preconceito de profissionais da saúde para com usuários do sistema. A existência/persistência do preconceito no SUS, por parte de diferentes profissionais, principalmente na atenção à saúde de mulheres negras, portadores de HIV/Aids, usuários de álcool e drogas e população idosa, representa a falha nos serviços e a consequente dificuldade de concretização da equidade. Políticas públicas equitativas articuladas ao compromisso de cidadania pautada no combate à desigualdade social e à conquista de direitos de justiça social, ética e moral, promotoras da dignidade humana só se tornam possíveis com a identificação e superação dos preconceitos e discriminações.

Palavras-chave: preconceito, equidade em saúde, Sistema Único de Saúde.

 

Resumen

El prejuicio que envuelve algunas prácticas ocurridas en los servicios de salud genera un gran impacto en el logro de la equidad en el Sistema único de Salud (SUS). El presente estudio discute el principio de equidad del SUS en relación al prejuicio, considerando ejemplos de situaciones que implican prejuicios de profesionales de la salud hacia usuarios del sistema. La existencia/persistencia del prejuicio en el SUS por parte de diferentes profesionales, principalmente en la atención a la salud de mujeres negras, de portadores de VIH/Sida, de usuarios de alcohol y drogas, y de la población de la tercera edad, representa un fracaso en los servicios y en el consecuente logro de la equidad. Las políticas públicas equitativas que estén articuladas con el compromiso de la ciudadanía, basadas a su vez en el combate a la desigualdad social y a la conquista de derechos de justicia social, ética y moral, y promotoras de la dignidad humana, sólo son posibles con la identificación y superación de los prejuicios y las discriminaciones.

Palabras clave: prejuicio, equidad en salud, Sistema Único de Salud.

 

Abstract

Practices of prejudice in the health services have a big impact on the achievement of equity in the Unified Health System (UHS). In this sense, this study discusses the principle of equity of the UHS in relation to discrimination, using examples of situations of prejudice from health professionals towards the users of the system. The existence / persistence of prejudice in the UHS, from several professionals, especially in health care for black women, HIV/Aids patients, users of alcohol and drugs and the elderly represents a failure in the services and the consequent difficulty in achieving the equity. Equitable public policies articulated with the compromise with citizenship based on the fight against social inequality and the achievement of rights of social justice, ethics and moral, promoting human dignity only become possible with the identification and overcoming of prejudice and discrimination.

Key words: prejudice, equity in Health, Unified Health System.

 

 

Introdução

A equidade no acesso às ações e aos serviços de saúde traduz o debate atual relativo á igualdade, prevista no texto legal, justificando a prioridade na oferta de ações e serviços às populações mais vulneráveis aos riscos de adoecer e morrer em decorrência da desigualdade na distribuição de renda, bens e serviços (Campos et al., 2006).

Dessa forma, é incluído na lógica do Sistema Único de Saúde (SUS) o princípio da discriminação positiva, buscando assegurar prioridade no acesso às ações e serviços de saúde aos grupos excluídos, considerando as desigualdades de condições decorrentes da organização social (Campos et al., 2006).

Estas, por sua vez, se dão pela própria sociedade que na busca de critérios para atribuir papéis sociais, se vale de diferenças naturais como as de sexo, raça, força, estatura, inteligência, fecundidade, entre outras, transformando-as em desigualdades sociais, que se transpõe para o âmbito da saúde (Silva & Barros, 2002).

Junto ao cenário da desigualdade social vem à tona a manifestação do preconceito, que implica em inúmeras complicações, não somente ao alvo, mas também ao preconceituoso, opondo-se aos princípios do SUS, que determina o acesso à saúde como direito de todos, uma vez que impelem os indivíduos que sofrem preconceito a se privarem desse direito pelo próprio medo/receio de serem submetidos a situações que os exponham como inaceitáveis dentro dos moldes da sociedade padronizada como “ideal”.

Acaba-se por ferir, assim, principalmente, a equidade, uma vez que não se reconhece a diferença do outro, mas sim a condena e exclui. Isto, na área da saúde, além de transgredir questões éticas, fomenta constantes discussões para abordar estratégias para a diminuição dessas práticas.

Neste trabalho, abordaremos formas e práticas de preconceito ocorridas no acesso aos serviços de saúde e seu impacto na concretização da equidade.

 

Objetivo

Discutir o princípio de equidade do SUS em relação ao preconceito, a partir de exemplos de situações de preconceito de profissionais da saúde para com usuários do sistema.

 

Metodologia

Trata-se de uma revisão retrospectiva de artigos científicos e outros materiais publicados a partir de 1996, cuja busca foi realizada em estudos indexados nas bases de dados na coleção Scientific Eletronic Library OnLine (SCIELO), Centro de Informação e Referência em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP (CIR), Biblioteca Padre Inocente Radrizzani e Núcleo de Documentação e Informação do Instituto de Saúde. Para a localização das obras foram utilizados os seguintes descritores: preconceito, equidade em saúde, sistema único de saúde. Para refinar a busca a essas combinações foram acrescidos outros termos pertinentes: preconceito, discriminação e acesso aos serviços de saúde.

A partir da identificação dos títulos e resumos dos periódicos on-line, foi realizada a seleção dos materiais que preencheram os critérios para sua inclusão, logo esses foram obtidos integralmente para leitura. Os critérios de inclusão foram: publicações disponíveis on-line, redigidas em português, no período de 1996 a 2009 que tratavam do preconceito vivenciado por usuários do SUS.

 

Equidade, preconceito e alienação

O SUS, criado pela Constituição de 1988, dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, e dá outras providências, através da lei nº. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Cujo atendimento aos cidadãos é assegurado pelos princípios de universalidade, integralidade e equidade.

O princípio de equidade diz respeito à adaptação da regra para situações especiais, para que se torne mais justa e igualitária. É moldar a norma, para que seja sensível às peculiaridades de cada situação, ou seja, populações vulneráveis pelo processo de exclusão social e cultural a que foram submetidas, devem ter garantido o atendimento adequado à situação, a fim de se reduzir essa vulnerabilidade.

O preconceito diz mais do preconceituoso do que do alvo do preconceito (Crochik, 1997), é um tipo de acontecer que pode desequilibrar a equidade. De acordo com o autor, os estereótipos culturais são roupagens que revestem os objetos, e como o indivíduo é produto da cultura, este se apropria destes estereótipos e os modifica de acordo com suas necessidades.

A prática humana de julgar que nossa consciência sabe e pode tudo, faz e pensa o que quer é determinada pelo inconsciente, e ignoramos esta determinação (Chauí, 2001). Da mesma forma que na existência social, os seres humanos julgam saber o que é sociedade, atribuem a Deus ou a Natureza a sua criação, se colocando como instrumento dela, temos a alienação intelectual tripla em que:

Primeiro, esquecem ou ignoram que suas ideias estão ligadas às opiniões e pontos de vista da classe a que pertencem… segundo esquecem ou ignoram que as ideias são produzidas por eles para explicar a realidade e passam a crer que elas se encontram gravadas na própria realidade e que eles apenas as descobrem e descrevem sob forma de teorias gerais… Terceiro, esquecendo ou ignorando a origem social das ideias e seu próprio trabalho para criá-las, acreditam que as ideias existem em si e por si mesmas, criam a realidade e a controlam, dirigem e dominam… As ideias se tornam separadas de seus autores, externas a eles, transcendentes a eles: tornam-se um outro (Chauí, 2001, p. 173).

 

Preconceito e discriminação no SUS

a) Na atenção à saúde da mulher negra

A evidência da discriminação de populações negras nas unidades de saúde é revelada por Kalckmann et al. (2007), que em sua análise os profissionais através da discriminação aumentam a vulnerabilidade desse grupo, criando uma barreira ao acesso, afastando o usuário. O impacto disso reflete na invisibilidade das doenças mais prevalentes no grupo, que interfere nos perfis de adoecimento e morte entre brancos e negros.

Este estudo contou com a análise de questionário entregue aos participantes do 2º Seminário de Saúde da População Negra do Estado de São Paulo, em 17 de Maio de 2005. De 240 questionários devolvidos respondidos, 43,3% responderam que já perceberam alguma discriminação racial nos serviços de saúde. Destes, 60% referiram ser de cor preta, 44,2% de cor branca e 40,8% de cor parda.

Santos, Guimarães e Araújo (2007) numa pesquisa da caracterização das desigualdades raciais ante a mortalidade de mulheres adultas negras e brancas, residentes em Recife, capital de Pernambuco, entre 2001 e 2003 analisaram que entre 2943 óbitos, 65,4% foram de negras e 34,6% foram de brancas.

Em todas as faixas etárias estudadas (20 a 59 anos), os autores apontaram que o risco de morte foi maior entre negras do que em brancas. No caso de óbitos hospitalares, em estabelecimentos do SUS, a ocorrência prevaleceu entre as mulheres negras, apontando uma forte relação entre pertencer à população negra e não possuir plano de saúde. Enquanto nos estabelecimentos exclusivamente privados, identificou-se situação inversa, de mortalidade proporcional mais elevada entre as brancas.

“A identificação de maiores coeficientes de mortalidade em mulheres adultas negras, com risco de morte quase duas vezes superior ao observado para mulheres brancas, evidencia a dimensão do legado do passado escravista da população negra, que produziu desigualdades resultantes do racismo e da discriminação racial” (Santos, Guimarães & Araújo, 2007, p. 95).

As formas de discriminação ao público feminino em relação a assistência à saúde, pelos estudos encontrados, se referiram principalmente à assistência ao pré-natal e ao parto, cujas ações são marcadas pela discriminação sobretudo por fatores educacionais e raciais.

O desfavorecimento de mulheres de cor de pele negra e parda com menor nível de escolaridade (até o ensino médio incompleto), em relação às mulheres brancas, durante a assistência ao pré-natal e ao parto no período de 1999 a 2001 em hospitais do município do Rio de Janeiro, revelado por Leal, Gama e Cunha (2005) tem relação direta com a prevalência de gestações na adolescência entre as negras, que reflete no seu pior desenvolvimento nas esferas sociais, a contar pela evasão escolar, déficit na qualificação profissional e dificuldade de entrada no mercado de trabalho.

O acesso ao pré-natal adequado foi identificado por este estudo como elemento marcante de desigualdade, em que menos de um quinto das mulheres negras pesquisadas com nível de instrução até o ensino médio incompleto tiveram acesso, e a mesma tendência ocorreu entre as mulheres com ensino médio completo e mais, cujo pré-natal adequado não cobriu metade das participantes. Convém lembrar que o Ministério da Saúde (2005a), através do Manual de Pré Natal e Puerpério: Atenção Qualificada e Humanizada, estabelece como seis o número mínimo de consultas de pré-natal.

Além disso, foi revelada a dificuldade entre as mulheres em conseguir atendimento na hora do parto, em que quase um terço das pardas e negras não conseguiu atendimento no primeiro local procurado revelando a falta de acolhimento e ausência de planejamento para a assistência ao nascimento no município do estudo. Entre as negras, o nível de instrução não se mostrou como diferencial, foram as mais penalizadas durante o parto vaginal, por em maior proporção não terem recebido anestesia ao comparar-se com as mulheres brancas. Esse padrão de peregrinação em busca do local de parto pelas mulheres e a pior assistência no pré-natal e durante o parto é reforçado por Kalckmann et al. (2007).

Ambos os estudos comentados foram realizados antes da implantação pelo Ministério da Saúde (2004a), da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, cujo objetivo é a incorporação num enfoque de gênero, a integralidade e a promoção da saúde como princípios norteadores, com base nos dados epidemiológicos e nas reivindicações dos vários segmentos da população, incluindo as mulheres indígenas, presidiárias, vítimas de violência, negras e trabalhadoras rurais. Essa política de forma geral reforça a necessidade de formas de relacionamento entre os profissionais de saúde e suas usuárias, baseado no respeito mútuo para a integralidade da assistência.

b) Na atenção à saúde de pessoas com HIV/Aids

O Programa Estratégico de Ações Afirmativas: População Negra e Aids, publicado pelo Ministério da Saúde (2005b) afirma que apesar de no Brasil a epidemia de Aids apresentar tendência de estabilização, o número de casos vem aumentando entre a população mais pobre, representando uma preocupação na saúde pública.

No Brasil o primeiro caso clínico de Aids ocorreu em 1983, com identificação restrita aos grandes centros urbanos dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro. O perfil epidemiológico nessa época caracterizado principalmente por pacientes do sexo masculino, alto nível socioeconômico e com transmissão de caráter homossexual/bissexual sofreu progressiva mudança ao final dos anos 80, com o acometimento de heterossexuais, mulheres, pessoas de baixa renda e a disseminação da doença no país, em cidades de médio e pequeno porte (Sadala & Marques, 2006).

Este impacto foi semelhante ao observado nos países desenvolvidos, em que desde o início houve grande mobilização a favor da prevenção, dos direitos dos pacientes e familiares, do acesso ao tratamento como responsabilidade do estado e particularmente da luta contra o preconceito (Sadala & Marques, 2006).

Nesse sentido em 1996, o Brasil inaugurou o acesso aos medicamentos antirretrovirais na rede pública de saúde, contrariando as recomendações do Banco Mundial, Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Orgazinación Panamericana de la Salud (OPS) de que os países pobres devem investir os recursos na prevenção de novos casos e não no tratamento (Ramos, 2004).

Entretanto, apesar do apelo de programas e ações, ainda existe um grande estigma e preconceito no atendimento destes pacientes e, que acordo com Garcia e Koyama (2008), a discriminação associada ao HIV/Aids pode não apenas dificultar/reduzir a procura pela realização do teste, mas também a busca de tratamento adequado nos serviços de saúde após confirmação do resultado. “Conflitos relacionados com medo e preconceito têm sido e continuarão sendo o principal problema na provisão de cuidados de saúde associados com HIV” (Tillett & Matsoukas, citados por Acurcio & Guimarães, 1996, p. 38).

Sadala e Marques (2006), numa pesquisa com profissionais da saúde com abordagem sobre as experiências no cuidado de pessoas com HIV/Aids, obteve depoimentos, como o demonstrado abaixo, que reflete na persistência do preconceito despropositado por profissionais nos serviços de saúde.

“Nós temos percebido, na minha vivência, ainda preconceito, estigma e, dependendo da orientação sexual do paciente, ainda se percebe muitas vezes funcionários fazendo comentários ‘ah, aquele lá é usuário de drogas’, ‘aquele lá é homossexual’, como se ele tivesse ido procurar o HIV” (P4 citado por Sadala & Marques, 2006).

c) Na atenção à saúde de usuários de álcool e drogas

Os serviços de saúde no Brasil apresentam relevante atraso na atenção à saúde de usuários de álcool e drogas, como afirmam Machado e Miranda (2007), que a responsabilidade de intervenções nesta área surgiu no início do século XX através de um aparato jurídico-institucional, com intuito de controlar o uso e comércio de drogas a fim de preservar a segurança e saúde pública do país.

Até a década de 80 o Brasil não dispunha de dados epidemiológicos consistentes em relação ao uso de drogas, apesar da existência do Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN), órgão normativo que contava com representantes de diversas áreas como: educação, segurança e até saúde segundo Machado e Miranda (2007). O início dessas pesquisas no campo da saúde se iniciou em 1987 pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), que integrava o departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Moraes, 2008).

Apesar do caráter repressivo e normativo, o confen elaborou dois documentos que visavam ampliar sua atuação: em 1988 foi criada a Política Nacional na Questão de Drogas, que reconhecia a necessidade de locais de referência para prevenção e tratamento desses indivíduos e, em 1996, o documento denominado Programa Nacional Antidrogas que, além de abordar itens anteriormente discutidos como necessidade de tratamento, manifestou preocupação em relação ao aumento de casos de HIV entre usuário de drogas injetáveis, necessidade de aumentar a capacitação de recursos humanos e estimular ações filantrópicas. Porém, todo encargo de efetivar e fiscalizar essas ações, ficavam para a então denominada Secretaria de Planejamento das Ações de Segurança Pública e ao Departamento de Entorpecentes, não havendo assim nenhuma articulação com políticas de saúde, tanto em 1988 com o então recém implementado SUS, quanto em 1996 com quase uma década de sua implantação (Machado & Miranda, 2007).

Após sete anos, em 2003 foi implantada a atual Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas (Ministério da Saúde, 2004b), que propõe assumir de modo integral e articulado o desafio de prevenir, tratar e reabilitar os usuários de álcool e outras drogas como um problema de saúde publica.

As consequências desta secular dissociação são até hoje sentidas nos serviços de saúde por profissionais e usuários, e se destaca pela falta de capacitação, que como Lima et al. (2007) abordou, os profissionais sentem dificuldades em identificar e compreender os problemas relacionados ao vício. As principais queixas relatadas pelos profissionais de saúde em relação aos usuários, neste estudo, foram: tumulto causado pelos usuários e falta de adesão ao tratamento. Relatam ainda que, eles próprios possuem dificuldades em lidar com os pacientes e acreditam que as questões envolvidas com o fator droga fogem de suas atribuições, se encarregando apenas de funções técnicas, principalmente nos casos de HIV/AIDS. Somado aos problemas apontados há o déficit de conhecimento dos profissionais sobre as políticas de saúde, como a de redução de danos, que ainda gera controvérsia entre os profissionais, apesar de sua eficiência (Almeida, 2003).

A partir dos elementos estudados, pode-se fazer uma relação do atraso histórico com que a questão do conturbado acesso do usuário de álcool e drogas ao sistema de saúde, entretanto, fatores como valores e ideologias mostram-se importantes na relação profissional e usuário, uma vez que esta é uma das formas de manifestação do princípio de equidade.

d) Na atenção à saúde da população idosa

No trabalho realizado por Berzins (2009), num serviço de emergência do SUS, constatou-se os maus tratos dispensados aos idosos assistidos no local, e que algumas práticas de atendimento beiraram a violência. Os participantes da pesquisa foram funcionários dessa unidade, que em razão de estarem como sujeitos do estudo preferiram culpar o colega ou até mesmo a instituição, a perceber a realidade.

Eis alguns exemplos de situações que foram apontadas como prejudiciais no atendimento ao idoso: (1) peregrinação: fazendo-os caminhar excessivamente até o local correto; (2) falta de escuta; (3) frieza, rispidez, falta de atendimento, negligência; (4) maus tratos motivados por discriminação quando a questão é a idade; (5) detrimento das necessidades e direitos do usuário; (6) proibição ou obrigatoriedade de acompanhantes com horários rígidos e restritos.

Nessa ótica, os funcionários veem a velhice como uma coisa ruim, uma situação que não desejam a si próprios e os discriminados por sua vez, não reclamam do mau atendimento por medo de não serem atendidos.

 

Discussão

A equidade em saúde refere-se à redução das diferenças consideradas desnecessárias, evitáveis, além de serem consideradas injustas (Viana, Fausto & Lima, 2003). Nesse sentido todos os estudos caracterizaram uma oposição a esse principio, revelado por atitudes banalizadas que acabam por definir cada vez mais o SUS como utopia diante da realidade.

Em momento algum, o modelo, o período, os padrões sociais, os estilos de vida devem ser esquecidos ao pensarmos em equidade. Vivemos num contexto de “turbulência permanente” uma analogia ao termo utilizado por economistas e profissionais de marketing ao se referirem a crises quando elas se tornam uma condição permanente. De maneira semelhante, percebemos que não existe resolução das iniquidades, os problemas em geral são administrados.

A eficácia da luta contra as desigualdades sociais na saúde depende que decisores políticos e os profissionais tenham uma boa compreensão do cenário atual, dos determinantes e da forma que os serviços de saúde podem trabalhar para confrontá-los (Whitehead & Dahlgren, 2006).

Hoje, os esforços para redução das iniquidades na área da saúde, enfocam questões relativas à distribuição de recursos financeiros (Luchesi & Souza, citados por Paim, 2006).

As condições de vida e acesso à saúde, no que diz respeito às desigualdades dos demais marcadores de posição social, como por exemplo, gênero, educação, renda (Chor & Lima, citadps por Paim, 2006), raça, opção sexual, idade, entre outros, vêm tardiamente sendo colocados em discussão pelos movimentos sociais, representando a dificuldade de concretização da equidade numa sociedade extremamente desigual como a nossa (Paim, 2006).

A implantação de programas e políticas pelo Ministério da Saúde, como a Política Nacional do Idoso, em 2003, Política Nacional de Atenção integral à Saúde da Mulher, em 2004, Política da Atenção Integral aos usuários de Álcool e Outras Drogas, em 2003 e o Programa Nacional de DST/AIDS, em 1985, são tentativas de redução da desigualdade.

Entretanto pensando numa dimensão mais ampla, como se pode operacionalizar programas ou políticas de saúde que visam a redução de iniquidades se estas parecem não possuir uma articulação eficaz com outras redes sociais? Estas não estariam favorecendo a manutenção de desigualdades, porém sob uma perspectiva menos agressiva pela existência de programas e políticas?

Apesar da existência de tais ações por parte do governo e do esforço da mobilização de alguns movimentos sociais, as manifestações preconceituosas e injustas mostraram o empobrecimento de expectativas positivas de uma significativa parcela população brasileira.

A compreensão de que a saúde é um recurso exclusivo para atingir outros objetivos na vida, tais como melhor educação e emprego e que é, uma forma de promover a liberdade de indivíduos e sociedades (Sem, citado por Whitehead & Dahlgren, 2006) é essencial.

 

Considerações finais

A literatura aponta o preconceito como um tabu no campo dos serviços de saúde, evidenciado, sobretudo pelo déficit no preparo e conhecimento profissional a cerca das políticas de saúde que integram o SUS. Revelado, sobretudo através de posturas negativas e levianas de um indivíduo para com o outro, transformando a relação profissional–paciente em um processo de dominação.

Profissionais de saúde precisam em sua formação cultivar e fortalecer a consciência de cidadania, reconhecer seu semelhante como digno e merecedor do seu trabalho, afastando assim atitudes que contribuam para prejuízos e marcas na saúde física e mental que o preconceito pode causar.

“Como a experiência e a reflexão são as bases da constituição do indivíduo, em sua relação com a cultura, sua ausência caracteriza o preconceito” (Crochik, 1997). Talvez, a inexistência de discussão, entre os profissionais de saúde, sobre o impacto da discriminação, bem como dos possíveis processos discriminatórios nos serviços, impeçam reflexões e movimentos de mudança. É necessário o estimulo de discussões sobre o tema preconceito e equidade, dentro dos serviços de saúde, e retomar, ao máximo, os princípios éticos que norteiam a prática profissional para que o atendimento ao usuário seja norteado pelo SUS e não por crenças e valores sociais e/ou pessoais. Desta forma, se faz presente a possibilidade de consolidação de políticas equitativas para o SUS.

As políticas públicas de saúde em geral são voltadas a justiça social, considerando as desigualdades de gênero, idade, de classe, de raça e de expressão sexual. Assim, fazem parte desse contexto outros assuntos que não foram abordados neste trabalho como: aleitamento materno, concepção, contracepção, aborto, doenças sexualmente transmissíveis e violência sexual. Espera-se com isso que sejam asseguradas estratégias que viabilizem a promoção da saúde e tratamentos adequados.

Por fim, fortalecer o processo de democratização e cidadania significa superar práticas patriarcais autoritárias e ou homofóbicas. Significa também alterar os limites impostos pelo estado, no sentido de respeito à vida privada, bem estar, transformação social e superação dos preconceitos e discriminações.

 

 

Referências

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* [A] robertapsicanalista@gmail.com