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Número 23 – Artículo 2

A entrega de um filho em adoção e as vicissitudes de ser mãe

 

Lívia Caetano da Silva Leão[A]

Caroline Gonçalves Carneiro da Silva[B]

Solange Aparecida Serrano[C]

Universidade de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, Brasil

Resumo

Este artigo teve como objetivo investigar os sentimentos e experiências de maternidade de uma mulher que entregou duas filhas em adoção. Além disso, investigar suas vivências na relação com seus outros filhos não entregues e com a condição de ser mãe neste contexto. Utilizando uma entrevista semiestruturada, realizou-se um estudo de caso único, de caráter qualitativo, através de relato clínico. Os principais resultados apontaram a vulnerabilidade social e emocional da participante como importante influência na entrega das filhas e uma diferenciação entre os filhos que permaneceram sob seus cuidados e as filhas entregues em adoção. Também se notou o papel materno fortemente relacionado ao cuidado e as distintas reações emocionais às experiências de entrega. Conclui-se a relevância de oferecer espaço para essas mães elaborarem suas histórias, além da necessidade de políticas públicas que deem suporte jurídico e emocional às mães/famílias que desejam realizar a entrega de filhos.

Palavras-chave: entrega de um filho em adoção, maternidade, psicologia jurídica.

Resumen

Se investigaron los sentimientos y experiencias de la maternidad de una mujer que entregó dos hijas en adopción, además de indagar sus vivencias en relación con sus otros hijos no entregados y con la condición de, en este contexto, ser madre. Utilizando una entrevista semiestructurada, se realizó un estudio de caso a través del relato clínico. Los principales resultados muestran la vulnerabilidad social y emocional de la participante como una importante influencia en la entrega de las hijas, así como una diferenciación entre los hijos que permanecen bajo su cuidado y las hijas entregadas en adopción. También destacan el papel materno fuertemente relacionado al cuidado y a las distintas reacciones emocionales de las experiencias de entrega. Se concluye señalando la relevancia de ofrecer espacios para que esas madres elaboren sus historias, además de la necesidad de contar con políticas públicas que den soporte jurídico a las madres y a las familias que desean entregar hijos en adopción.

Palabras clave: entrega de un hijo en adopción, maternidad, psicología jurídica

Abstract

This study aimed to investigate the feelings and experiences of motherhood of a woman who delivered two daughters for adoption. Furthermore, investigate their experiences in relation to her other children not delivered and with the condition of being a mother in this context. Using a semi-structured interview, we conducted a single case study, qualitative, through clinical report. The main results indicated the social and emotional vulnerability of the participant as an important influence on the delivery and a differentiation between children who remained in their care and daughters delivered for adoption. It was also noted the maternal role strongly related to maternal care and the different emotional reactions to experiences of delivery. We conclude the relevance of providing space for these mothers elaborate their stories, beyond the need for public policies that give legal and emotional support to mothers / families who wish to make delivery of children.

Key words: giving of a child in adoption, motherhood, juridical psychology

 

 

 

Introdução

Tornar-se mãe não se inicia necessariamente no período da gestação e está relacionado à constituição subjetiva de cada mulher, com seus aspectos infantis, reeditados quando ela se torna mãe (Miranda & Cohen, 2012; Ferrari, Piccinini & Lopes, 2006). Assim, a gestação compreende um momento de transformações necessárias para que se construa um lugar psíquico para o bebê, sendo considerado um importante período da constituição da maternidade (Piccinini, Gomes, Nardi & Lopes, 2008). A literatura que discute as especificidades do papel social de mãe evidencia que a realização maior da mulher está relacionada a ser mãe (Motta, 2001; Raphael-Lef, 1984), embora atualmente outros sentidos venham compondo as experiências femininas (Dias & Lopes, 2003; Patias & Buaes, 2012). Diante das especificidades de formação deste vínculo, questiona-se como isso ocorreria nos casos de entrega de filhos em adoção ou ao cuidado de terceiros, pressupondo serem essas situações ainda mais complexas.

Ter um filho traz em si diversos significados, influenciados por sentimentos ambivalentes, condições sócio-afetivas e financeiras da mulher, de maneira que para cada uma esse momento terá um significado próprio (Menezes, 2007; Raphael-Lef, 1984). Esses aspectos terão impacto direto sobre a vivência da gravidez e da escolha do destino do bebê. Por isso, é destacada a importância de se analisar a história de vida da gestante, a relação com sua própria mãe, os sentidos e significados atribuídos por ela à maternidade e ao nascimento de um filho (Menezes, 2007).

Tratar o tema da entrega de bebês em adoção exige pensar e superar os estereótipos sociais em relação à maternidade. Ao retomar a história da valorização da maternidade e da criança, encontram-se aspectos contrários aos atuais. Até o fim da Idade Média, a criança era considerada um ser imperfeito e o abandono era uma prática comum. A Roda, nome dado à Casa dos Expostos, onde eram colocadas as crianças que se queria abandonar, foi criada ao longo dos séculos XV e XVI e teve seu início na Itália. No Brasil, a prática de abandono dos filhos teve início a partir da chegada dos brancos europeus e ocorria no espaço urbano. A Roda dos Enjeitados foi criada a partir do século XVIII e se prolongou até meados do século XX. Com o aumento do abandono e da mortalidade infantil, a estratégia utilizada foi conscientizar as mães a cuidarem e valorizarem seus filhos. Dessa forma, a partir do século XIX as mulheres foram estimuladas a exercer o papel de mãe e o abandono passou a ser censurado socialmente. A mulher deveria exercer sua função de boa mãe, considerada como algo instintivo, natural e repleto de emoção. Assim o amor materno se tornou atualmente algo naturalizado, idealizado, mitificado e universal (Badinter, 1985; Menezes, 2007; Motta, 2001; Soejima & Weber, 2008).

Alguns estudos relatam que mães que sofreram abandono e negligência em suas histórias passadas podem reproduzir tal fato em suas experiências maternas, caracterizando um círculo repetitivo de geração em geração. Acredita-se, apesar de não ser determinante, que a vivência nas experiências familiares de padrões educativos e estilos parentais pode influenciar no modo como ocorrerá a futura maternagem e a possibilidade de um abandono (Lipps, 2002; Watanabe, 2002). Outros aspectos que podem influenciar na decisão de entrega se referem à ausência da figura paterna, perdas sofridas pelas mães, falta de apoio social, condição socioeconômica desfavorável e também aspectos subjetivos de cada uma (Costa, 2006).

A respeito das crianças encaminhadas para adoção, Fonseca (2012) ressalta que a maioria delas vem de famílias miseráveis. Além disso, alguns pesquisadores destacam o quanto as mulheres que entregam seus filhos foram muitas vezes abandonadas por seus parceiros, por seus pais, pela sociedade e, no entanto, são recriminadas como se seus atos fossem derivados apenas de escolhas conscientes. Outra questão importante refere-se à falta de recursos materiais e rede de apoio das famílias biológicas. Esses fatores têm sido utilizados como pressupostos para a entrega de filhos, o que vai contra os preceitos do Estatuto da Criança e do Adolescente (Mariano, 2004; Mariano & Rossetti-Ferreira, 2008).

Uma pesquisa realizada no Brasil com 53 mães que entregaram seus filhos revelou que 75% delas não possuíam condições econômicas favoráveis para criar o filho, além de outros agravantes, como a ausência do pai da criança e a falta de apoio familiar (Freston, 2000). O assunto da entrega de filhos em adoção é bastante controverso e complexo, permeado por preconceitos e estigmas, e acende reações ao desamparo humano que desperta nas pessoas. Essas mulheres acabam tendo sua existência negada e marginalizada, de modo que as mesmas se tornam “invisíveis” socialmente (Associação dos Magistrados Brasileiros [AMB], 2008).

É possível que esta mesma dificuldade seja considerada quando se busca por estudos realizados internacionalmente. Assim como no Brasil, eles investigam diversos aspectos referentes à adoção, mas não com foco na mãe que entrega o filho. Destaca-se o estudo de March (1997), o qual analisa os efeitos do contato entre as mães que entregaram as filhas em adoção e as próprias filhas. Este estudo discute resultados importantes por parte das mães, como a incerteza da identidade da filha, o medo da rejeição e uma sensação de insatisfação com o momento após o contato. Estas questões foram intensificadas pela dificuldade de cada mulher em expressar suas próprias necessidades de contato com sua filha, o que exige assistência a essas mulheres.

Atualmente no Brasil tem havido discussões relevantes no que tange a essa temática. Algumas leis foram implementadas com o intuito de atender algumas lacunas relacionadas à adoção e aos envolvidos nos processos de adoção. Como exemplo, a Lei 12010/2009, denominada Nova Lei da Adoção (2009), institui a responsabilidade de que o poder público proporcione assistência psicológica à gestante e à mãe nos períodos pré e pós-parto. Isto poderia auxiliar as mulheres a lidar com as questões delicadas do estado puerperal, que podem gerar consequências, como uma decisão impulsiva pela entrega. Inclusive, essa assistência deve ser garantida a mulheres que manifestem vontade de entregar seus filhos para adoção.

De fato, compreende-se que são vários os fatores que influenciam na decisão de entregar o filho para adoção. Diante disso, o objetivo deste trabalho foi investigar os sentimentos e experiências de maternidade de uma mulher que entregou duas filhas em adoção. Mais especificamente, pretendeu-se investigar suas vivências na relação com seus outros filhos não entregues e com a condição de ser mãe neste contexto.

 

Método

Participou deste estudo Ana[D], de 58 anos, com escolaridade de Ensino Fundamental completo. Ela teve oito filhos, dos quais a primogênita e a caçula foram entregues em adoção. Ana foi indicada às pesquisadoras por uma psicóloga, que perguntou à Ana se ela conhecia alguma pessoa que havia entregado um ou mais filhos em adoção. Ela disse que havia feito e gostaria de conversar com as pesquisadoras. Importante mencionar que a busca por uma participante exigiu contatos com diversos profissionais (assistentes sociais, psicólogos e professores) e instituições que atendem à comunidade (maternidades, Conselho Tutelar, abrigos, Bases Comunitárias, Programa Saúde da Família, unidades do Centro de Referência de Assistência Social e Organizações Não Governamentais – de apoio à família, de profissionais do sexo, de apoio às mulheres que sofrem violência doméstica, dentre outros tantos). A dificuldade no acesso a possíveis participantes ficou clara pela inacessibilidade às suas histórias e pela própria estigmatização em torno do fato de terem entregado um ou mais filhos em adoção, de modo que estas mulheres passam a viver praticamente anônimas, em situação de exclusão social.

Ao final desta busca, as pesquisadoras tiveram contato com quatro mulheres que realizaram a entrega de um ou mais filhos, explicando do que se tratava o estudo e apresentando a elas o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Após desistências e impossibilidade de que algumas falassem sobre esse assunto, foi escolhida a única entrevista que pôde ser realizada por completo, com Ana. Esta entrevista foi realizada em um encontro com a participante, em sua residência, e consistia de questões sobre aspectos sociodemográficos e tópicos a respeito de temas da história de vida da participante, como infância, adolescência, vida adulta, maternidade, a entrega das filhas e as repercussões das entregas.

Todas as exigências éticas foram seguidas, com autorização do estudo pelo Comitê de Ética da Universidade de Ribeirão Preto. Realizou-se um estudo de caso único, de caráter transversal. A entrevista foi gravada e transcrita na íntegra, lida exaustivamente e os aspectos mais relevantes apresentados em forma de relato clínico (Epstein, 2011; Mordcovich, 2011), utilizando excertos das falas da entrevistada quando pertinente. Este relato foi composto por uma breve descrição da história de vida da participante e por dois eixos temáticos que emergiram da própria entrevista, sendo o primeiro relativo aos Sentimentos e experiências de maternidade com os filhos que ficaram com Ana e o segundo referente aos Sentimentos e experiências de maternidade com as filhas entregues em adoção. Concomitantemente, os principais achados foram discutidos com base na literatura.

 

Resultados e discussão

À época do contato com as pesquisadoras, Ana tinha 58 anos, era solteira e vivia sozinha (o filho que vivia com ela, quarto em ordem de nascimento, havia sido preso há pouco tempo) em um cômodo localizado em um terreno baldio, no qual não havia saneamento básico nem luz elétrica e escassos recursos materiais. Ela sobrevivia da coleta de lixo, pois estava impossibilitada de continuar trabalhando como varredora de rua após sofrer um infarto. Desde a infância morou em diversos lugares, devido à necessidade de ter que trabalhar desde muito pequena. Ana era a caçula de três irmãs.

Em diversos momentos Ana se emocionou bastante, não contendo o choro. Chegou a se ausentar do local da entrevista para chorar no outro cômodo de sua casa, ao referir-se à primeira filha entregue. Por vezes, pausas foram feitas para que ela se acalmasse e a entrevista prosseguisse, com seu consentimento. As pesquisadoras questionaram algumas vezes se ela gostaria de interromper seu relato, mas ela afirmou a necessidade de poder falar sobre aquelas questões que há tanto tempo a incomodavam.

A história de Ana foi marcada pela ausência de seu pai. Sua mãe, apesar de sempre presente, viveu poucos anos com Ana e suas duas irmãs, pois cada uma residia em seu emprego. A mãe foi mencionada sempre como uma figura severa e violenta, da qual a participante tinha muito medo e era muito submissa. Ela relatou diversos episódios de violência doméstica ocorridos durante sua infância e adolescência, principalmente cometidos pela mãe em relação às duas irmãs. Quando tinha 13 anos de idade e trabalhava como doméstica, teve sua primeira filha, cujo pai era irmão de sua patroa. Quando o bebê nasceu, ela perdeu o emprego e sua mãe foi quem negociou a entrega da filha aos cuidados de uma pessoa conhecida, que acabou adotando a criança através de uma adoção pronta[E]. Ela nunca mais soube dessa menina. Aos 19 anos teve seu segundo filho e, algum tempo depois, mais três filhos com o mesmo companheiro. Por fim, após romper com este, teve mais três filhos com outro companheiro – destes, a última filha foi entregue por Ana a uma família, que também se configurou em uma adoção pronta. Essa filha também não foi procurada, pela decisão de Ana de se manter afastada.

 

Sentimentos e experiências de maternidade com os filhos que permaneceram com Ana

Importante iniciar destacando a relação de Ana com sua mãe, que permeou toda a experiência da participante quando ela própria se torna mãe. As vivências de ambas foram muito parecidas, em meio à intensa vulnerabilidade social, como ausência do companheiro na criação e cuidado dos filhos e sentimentos de abandono. Ademais, notou-se que as relações com a figura materna foram sempre marcadamente ambivalentes e conflituosas. Ana, inclusive, trouxe em seu relato a culpabilização de sua mãe pelas carências que existiram em sua vida como a ausência da mãe nos cuidados físicos e afetivos, refletida na necessidade de buscar seu próprio sustento desde muito cedo. Isso vai ao encontro do estudo de Marin e Piccinini (2009) que afirma que ser mãe solteira exigiria maior apoio social especialmente naquelas famílias em carência de diferentes ordens, já que elas poderiam ter maiores dificuldades devido à sobrecarga de tarefas.

Passando às experiências de maternidade, ela relatou que as gestações, em sua maioria planejadas, significaram momentos de plenitude e alegria para ela. Ter filhos representava uma importante função, ligada à capacidade de criação e à necessidade de exercer seu lado protetor. A condição de existir de Ana estava intimamente ligada a ser mãe, como se esse fosse o único papel possível de ser desempenhado por ela, ideia que vem sendo discutida na literatura (Motta, 2001; Raphael-Lef, 1984). Quanto a tornar-se mãe, ela afirmou que diversos aspectos de si mesma se modificaram, especialmente a vontade de cuidar e proteger os filhos. Percebeu-se que tornar-se mãe significou para Ana a oferta de cuidado, afeto e proteção, os quais ela não teve: “muda muita coisa né [ser mãe]. Eu acho, pra mim, muda muito. Que eu sou muito grudada, de querer cuidar, de querer…. Medo deles mexer, de fazer qualquer coisa”.

Contou que, por ser muito nova quando do nascimento da primeira filha, aos 13 anos, sua forma de cuidado refletia sua inexperiência: “Pra mim era como um brinquedo [a primeira filha]…. Eu dava banho nela, punha na bacia e deixava ela. Pra mim ela tava brincando na bacia, quase deu dor de ouvido na menina (riso)”. Um dado importante referiu-se à confusão sobre a ordem e ano de nascimento de cada um dos filhos, de modo que Ana não considerava como filhas aquelas que foram entregues, de forma que permaneciam apenas como uma breve experiência na vida de Ana.

Deste modo, ser mãe, para Ana, significava dedicação extrema aos filhos, o que ficou claro pelo exemplo da filha com deficiência, à qual Ana dedicava toda atenção e cuidado. Embora ela sentisse que com esta filha ela podia exercer verdadeiramente o papel de mãe, que parece ligado ao cuidado, ficava em dúvida diante de críticas sobre sua forma de criar os filhos, considerada exagerada. Entretanto, ela se justificava ao afirmar que não gostaria de seguir o modelo de sua mãe:

Ah, eu acho que meu jeito de ser mãe… Porque eu tô querendo ser mais do que Deus, sou mais do que Deus pros meus filhos. O que eu passei com a minha mãe eu não quero ver eles passar. Eu acho que eu fico…. a mais. Ela [colega] falou que é pra mim diminuir um pouco. Eu acho que eu tenho… cuidar demais. Quero proteger…

Assim como no presente estudo, o de Dias e Lopes (2003) encontrou que entre mães e filhas a representação social da maternidade constituía-se por dedicação e cuidado, apoiada na ideia de maternidade ligada ao afeto.

Mesmo não tendo qualquer tipo de ajuda no cuidado aos filhos, ela se utilizava do conhecimento adquirido no contexto de seu trabalho como doméstica, tendo cuidado de outras crianças: “[Eu que] Cuidava… era eu mesmo. Sempre, eu sempre cuidei, sempre trabalhei, pajeava a filha dos outros também”. Além disso, ela desejava que os filhos retribuíssem aos cuidados dela, esperando que eles fossem um apoio efetivo para ela, o que não aconteceu:

Tava sempre atrasada, que o pai não ta ali, mas eu tô sempre ali. Mas eu não… não vale a pena muito não, sabia. Porque agora eu que preciso deles [os filhos] e ninguém ta me ajudando…. Eu acho que eu dediquei demais pra eles e eles nada pra mim (se emociona).

Quanto ao apoio às mães, um estudo (Lopes, Prochnow & Piccinini, 2010) apontou que aquelas mães que não tiveram apoio de uma figura feminina que servisse de modelo de mãe e que fosse mais experiente, sentiram dificuldades em lidar com as tarefas da maternidade e os cuidados ao bebê. Esses achados corroboram o que vem sendo discutido sobre as repercussões das experiências vivenciadas por Ana com sua mãe e a forma como ela exerceu os cuidados aos filhos.

Por fim, um dos principais aspectos destacados por Ana em seu papel de mãe referiu-se ao seu incentivo na educação dos filhos. Apesar da escolaridade limitada, devido à necessidade de trabalhar desde criança, ela se esforçava para ensiná-los o que sabia e para que eles vivenciassem algo diferente de suas próprias experiências:

Então tava sempre pondo na escola, sempre…. Eu chegava do serviço, punha sentado ali numa mesinha. Ensinava. Fazendo comida, ensinando eles o… a, e, i, o, u, ensinando o que tiver que ensinar …. Eu explico pra eles até hoje.

 

Sentimentos e experiências de maternidade com as filhas entregues em adoção

Em relação às entregas, como referido anteriormente, Ana vivenciou duas situações distintas de adoção pronta: a primogênita foi entregue por sua mãe, sem seu consentimento, e a caçula foi entregue por ela própria. Na primeira situação, Ana teve que se submeter à decisão da mãe sobre a entrega de sua primogênita, uma vez que o bebê era fruto do relacionamento de uma adolescente com um homem casado (irmão de sua patroa): “Aí minha mãe vendeu, me vendeu lá, fez lá os pacote deles lá. (risos)…. Eu fui lá, vendeu, pegou dinheiro lá, porque disse que tinha que pagar a honra da menina…. (se emociona e fica em longo silêncio)”. Embora não quisesse entregar a filha, ao não reagir contra a decisão da mãe, Ana pareceu aceitar e se submeter a essa escolha: “Aí eu tive a menina né. Primeiro… A menina [primogênita] ficou muito tempo lá. Ficou um ano mais ou menos com a gente, eu acho”. De acordo com Fonseca (2012), na época em que Ana fez a entrega da primogênita, era bastante comum que a mãe fosse coagida a fazê-la sob ameaças, além da visível desvantagem legal feminina e materna sobre os filhos.

Ao falar sobre a entrega da segunda filha, Ana se emocionou novamente, ao lembrar os momentos vividos com ela, e a dificuldade em se separar daquele bebê ao qual ela devotou cuidados. A família adotante possuía posição social e econômica privilegiada e acabou propondo a Ana o pagamento de seu parto cesariano em troca de ficar com sua filha:

Eu não vou deixar essa aqui passar o mesmo que da outra né. Aí, tive que pagar essa operação. Aí a moça falou, ‘Se você quiser Ana, você tem já criança, já tem menino…’. Já tinha as três já, as três meninas. Ia ser a quarta. ‘Deixa ela comigo que aí eu te pago a operação’. Aí foi assim… (fala começando a chorar)…. Aí eu operei.

Ana explicou que antes de ter a caçula, uma das filhas precisava de cuidados especiais e ficava muito tempo internada em hospital. Isso, somado à interferência de sua mãe, que não queria mais nenhuma criança em casa, fez com que ela tomasse a decisão pela entrega.

Ademais, o distanciamento em relação às duas meninas ocorreu de duas formas distintas: na primeira entrega houve o afastamento por parte da mãe adotiva, que desapareceu com o bebê. Na outra situação de entrega, quem decidiu se afastar foi Ana, com receio de não suportar a ambivalência que sentia por conviver com uma filha biológica que foi adotada por outra família. Questiona-se o quanto a entrega de um filho se configura como uma morte para a mãe que entrega, não apenas pela perda da guarda do filho, mas pelo rompimento definitivo do vínculo, uma vez que as mães biológicas geralmente acabam perdendo o contato com o filho.

Percebeu-se que, para Ana, entregar um filho em adoção, com a decisão de se distanciar dele, representava cuidado, como se não houvesse espaço entre o bebê e a família adotante para a mãe biológica, que se exime do convívio com a filha. A entrega de um filho expõe uma atitude pensada, que demonstra aceitação do fato de se reconhecer como impossibilitada de criá-lo. Atualmente as adoções ocorrem seguindo uma política fechada, em que acontece uma ruptura total do contato entre a criança e a família biológica. Esta política acaba por prejudicar a oportunidade da mãe que entregou elaborar melhor sua ação, além de impedir que a criança tenha acesso a sua história de origem (Motta, 2001).

Ao contrário do que expressa o senso comum, geralmente, a mãe que entrega um filho para adoção sente afeto pelo bebê e uma ambivalência enorme entre entregar ou não o filho. Ana referiu que se trata de uma decisão que não pode ser muito pensada para ser concretizada: “É difícil viu. (silêncio) Se você ficar pensando e olhando a neném… Não pode olhar, porque na hora que chegou pra pegar, eu já saí pra fora… Fiquei pra lá… (chora)”. É interessante observar duas questões muito relevantes, relativas às formas como Ana se refere às filhas entregues e às mães adotantes. As filhas não são nomeadas, apenas mencionadas como “uma outra” criança, e as mães adotivas são diferenciadas de acordo com a forma de entrega: aquela mulher para a qual Ana não consente a entrega (primogênita) é lembrada pelo nome e a mulher para quem Ana entrega por decisão é referida como “a mulher lá”.

A história de Ana apresenta elementos parecidos conforme apontados por outros estudos (Chrispi, 2001; Fonseca, 2012; Motta, 2001). Não são apenas os fatores socioeconômicos que intervêm na decisão da entrega, mas sim a junção de outros como a ausência paterna e a atitude da família de omitir-se ou rejeitar a gestação. Estes fatores acabam por influenciar a mãe, deixando-a insegura com relação à criação do filho. Outra questão trazida por Ana referiu-se ao preconceito sofrido por ter entregue suas filhas, através de julgamento feito por uma pessoa de sua religião que soube das entregas. Importante discutir que esses julgamentos não se restringem à questão religiosa, mas sim a uma ideia de que a entrega é inaceitável. Entrar em contato com esta temática gera mal estar e angústia, pois pensar no afastamento entre mãe e filho remete a aspectos arraigados do imaginário social, como o mito do amor materno e a questões emocionais próprias de cada um sobre a maternidade (Motta, 2001; Associação dos Magistrados Brasileiros [AMB], 2008). Diante disso, essas mães que realizam a entrega acabam esquecidas, discriminadas e isoladas neste momento em que se sentem frágeis, ansiosas, culpadas e temerosas (Chrispi, 2001).

É importante fazer a diferenciação entre abandono e entrega, uma vez que o primeiro termo carrega o sentido de estigma e não traduz o cuidado e preocupação da mãe biológica em não colocar em risco ou prejudicar seu filho (Fonseca, 2012; Motta, 2001). As mães que entregam os filhos estão em busca de uma família que proporcione melhores condições de vida para eles, não apenas materiais, mas que também supram as necessidades biopsicossociais da criança (Costa, 2006). Dessa forma, é importante que haja um espaço de escuta e compreensão, para que a mulher que tem a intenção de entregar seu filho encontre apoio em alguma instituição pública ou privada.

 

Considerações finais

Este artigo abordou um fragmento da história de vida de uma mulher que entregou duas filhas em adoção, investigando seus sentimentos e experiências de maternidade neste contexto de entrega e sua relação com seus filhos não entregues. Ressaltou-se em suas experiências de maternidade a influência de seu relacionamento com sua própria mãe sobre o modo de cuidar e realizar sua maternagem aos filhos, inclusive quanto às entregas para adoção. Foram constatadas semelhanças na representação de maternidade de Ana com as representações de mães que não fizeram entrega de filhos, com ênfase no cuidado como principal representativo do papel materno. Reconhece-se que as entregas deixaram marcas importantes na vida de Ana, de modo que ela se recordou vividamente das duas situações com as filhas.

Quanto às experiências de entrega sugere-se que elas foram desencadeadas por aspectos de vulnerabilidade social e emocional, como pobreza, ausência dos pais dos filhos, falta de apoio social, especialmente o rechaço por parte de sua própria mãe durante sua vida. Questiona-se se as experiências que Ana vivenciou com sua mãe teriam influenciado em seu papel materno, com possíveis dificuldades em lidar com as tarefas desta ordem. Em meio a essas questões, Ana se esforça por querer ser uma mãe diferente e aplacar as falhas e a culpa sentidas em decorrência da entrega das filhas, o que a faz exagerada em seu cuidado.

Embora este estudo tenha se baseado em um único caso, ele trouxe aspectos extremamente relevantes, apoiados pela literatura, que denotam a necessidade de continuidade de pesquisas com estas mães. Sugere-se investigar mais profundamente aspectos de sua dinâmica psíquica como fundamentais na compreensão da escolha pela entrega. Falar sobre esse delicado tema é uma necessidade premente, de modo que o conhecimento sobre o assunto possa auxiliar os profissionais no trabalho e na escuta a essas mulheres. Assim, um espaço deve ser priorizado para que elas possam elaborar suas histórias, bem como a implantação de políticas públicas que garantam dignidade, apoio jurídico e emocional a elas.

 

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Watanabe, H. (2002). The transgenerational transmission of abandonment. Journal of Comparative Family Studies, 29, 187-205.

 
 
 

* [A]  liviacsl@gmail.com

* [B]  carol_gcs@yahoo.com.br

* [C]  solserrano@ig.com.br

* [D] Nome fictício.

* [E] Adoções prontas ou diretas são aquelas que implicam a entrega de uma criança por parte dos pais biológicos a um casal ou pessoa solteira, viúva ou separada. Já estando com a criança, a família adotante procura a Vara da Infância e Juventude a fim de regularizar a situação, ou seja, procuram legitimar uma adoção de fato (Mariano & Rossetti-Ferreira 2008).